quinta-feira, 21 de julho de 2022

Dom Luiz governou o Brasil

 

Dom Luiz governou o Brasil

 

Péricles Capanema

 

Permanece fúlgida a marca imorredoura. Sepultado no Cemitério da Consolação na capital paulista em 18 de julho, faleceu em 15 de julho dom Luiz de Orleans e Bragança, Chefe da Casa Imperial do Brasil. Sua bisavó, a Princesa Isabel foi a última da família que, interinamente, segurou as rédeas do governo ▬ foi Regente do Império pela terceira vez entre junho de 1887 e agosto de 1888. Tardinha começando a cair, primeiras sombras, frescor intenso no ar, profusão de coroas de flores adornadas com textos emocionantes alinhavam-se, como sentinelas, ao longo da alameda que conduzia ao túmulo já aberto. Misturei-me silente ao respeitoso magote que esperava a chegada do corpo ao cemitério. Enquanto observava a ativa movimentação de tropas da Marinha, um ou outro uniforme de alto oficial, um sacerdote que supervisionava trabalhos, a mente divagava. Reflexões sucediam-se naturalmente; como num filme, a fantasia buscava aspectos da vida e da personalidade do príncipe que em instantes ali receberia as últimas homenagens. Para os que tiveram a ventura de conhecer dom Luiz, deixa marca imorredoura. Soube unir na personalidade paternal, com cativante harmonia, qualidades raramente próximas: modesto, senso perfeito e discreto da posição, batalhador, convívio suave; mais ainda, sofredor, penitente, resignado, piedoso. A enfermidade o estigmatizou, jamais o derrotou moral e psicologicamente.

 

Governo dos comportamentos. Repentina saltou constatação: “Pena, dom Luiz nunca governou o Brasil”. Logo após assomou a pergunta: “Nunca governou?” Brotava rápida a resposta, parecia simples, incontroversa; melhorando, nem tanto, borbotava à vera simplificadora e simplória: dom Luiz nunca governou, nunca assinou um decreto, por mais desimportante que fosse. Concomitante, aparecia outra resposta, subia do fundo do espírito e ia ganhando forma; matizada, revelava realidade mais funda: “Em termos, dom Luiz, sob um ângulo, governou o Brasil. Como nenhum outro governante”. Qual ângulo?

 

Renovação de doutrina antiga. É antiga, muito conhecida, a concepção que exporei abaixo, mas nos últimos anos vem ganhando teóricos de importância, entre os quais cabe destacar Javier Gomá Lanzón (em 2012 e 2014 a revista Foreign Policy, edição em espanhol, colocou-o entre os 50 intelectuais iberoamericanos mais importantes). Na esteira de muitos outros e até do bom senso comum, o celebrado erudito espanhol afirma, o mais importante em um governante é a exemplaridade. Dar bom exemplo, em português singelo. A doutrina vai além, se há o dever do bem exemplo, o governante que dá mau exemplo causa dano moral ao povo. Acontece com frequência, o dano moral não vem só. Muitas vezes há tragédias materiais envolvidas. Em resumo, a exemplaridade é a mais importante característica do governante. E dar mau exemplo é a pior. O governante (não só o governante político, todas as pessoas em posição de destaque, a qualquer título, a começar pelo pai e pela mãe) inspira comportamentos, favorece hábitos, combate costumes. Para a obtenção do bem comum de um povo, esse deve ser o grande objetivo do dirigente político. Influi fundo, marca por décadas, até séculos.

 

Governo estaqueado na exemplaridade (ou bom exemplo). Vamos ao que afirma Javier Gomá Lanzón: “O espaço público está cimentado sobre a exemplaridade, esse é seu cenário mais genuíno e próprio. A política é a arte da exemplaridade”. Para estear bem o bom governo, garante o intelectual espanhol, o dirigente deve “pregar com o exemplo. Só o exemplo prega de forma eficiente”. Promessas, discursos, atos administrativos, sem o exemplo, caem no vazio. Na Grécia antiga, da democracia direta, o cidadão participava do governo debatendo e votando na praça pública (ágora). Nos tempos modernos, de democracia indireta, igualmente não só o voto configura participação na construção do bem comum. Debater, opinar, protestar, apresentar programas, sugerir soluções, à maneira do grego antigo na ágora, também é contribuir para a obtenção do bem comum. Dentro de tal quadro, dar bom exemplo é a primeira e mais importante participação. Influi no tom moral da sociedade, na criação de seus rumos e expectativas, marca o que é estimulado, o que é desaconselhado, o que é proibido. E assim, vai mais fundo que a coação legal (que age nos atos externos), alcança o interior das personalidades, pensamentos, anseios, convicções.

 

O bom exemplo de dom Luiz. Don Luiz participou da obtenção do bem comum nacional de forma insigne pelo extraordinário bom exemplo de uma vida inteira. Nesse sentido, padrão moral perene, governou na mais alta acepção. E os brasileiros de bem, diante de sua memória virtuosa ▬ e de seu governo, como Chefe da Casa Imperial e sucessor legítimo da Princesa Isabel ▬ inclinam-se hoje reverentes e agradecidos. Em certo sentido, muito real, continua a governar. Como seu ancestral, são Luiz IX (1214-1270), cujo bom exemplo até hoje orienta em alguma medida o espírito dos franceses. Assim, com inteira exatidão, sob o ângulo do bom exemplo, podemos afirmar, Dom Luiz governou. E ainda governa.

 

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