Dom Luiz governou o
Brasil
Péricles Capanema
Permanece fúlgida a marca imorredoura. Sepultado no Cemitério da Consolação na
capital paulista em 18 de julho, faleceu em 15 de julho dom Luiz de Orleans e
Bragança, Chefe da Casa Imperial do Brasil. Sua bisavó, a Princesa Isabel foi a
última da família que, interinamente, segurou as rédeas do governo ▬ foi Regente
do Império pela terceira vez entre junho de 1887 e agosto de 1888. Tardinha começando
a cair, primeiras sombras, frescor intenso no ar, profusão de coroas de flores
adornadas com textos emocionantes alinhavam-se, como sentinelas, ao longo da
alameda que conduzia ao túmulo já aberto. Misturei-me silente ao respeitoso
magote que esperava a chegada do corpo ao cemitério. Enquanto observava a ativa
movimentação de tropas da Marinha, um ou outro uniforme de alto oficial, um
sacerdote que supervisionava trabalhos, a mente divagava. Reflexões sucediam-se
naturalmente; como num filme, a fantasia buscava aspectos da vida e da
personalidade do príncipe que em instantes ali receberia as últimas homenagens.
Para os que tiveram a ventura de conhecer dom Luiz, deixa marca imorredoura. Soube
unir na personalidade paternal, com cativante harmonia, qualidades raramente
próximas: modesto, senso perfeito e discreto da posição, batalhador, convívio
suave; mais ainda, sofredor, penitente, resignado, piedoso. A enfermidade o
estigmatizou, jamais o derrotou moral e psicologicamente.
Governo dos comportamentos. Repentina saltou constatação: “Pena, dom
Luiz nunca governou o Brasil”. Logo após assomou a pergunta: “Nunca governou?” Brotava
rápida a resposta, parecia simples, incontroversa; melhorando, nem tanto, borbotava
à vera simplificadora e simplória: dom Luiz nunca governou, nunca assinou um
decreto, por mais desimportante que fosse. Concomitante, aparecia outra
resposta, subia do fundo do espírito e ia ganhando forma; matizada, revelava
realidade mais funda: “Em termos, dom Luiz, sob um ângulo, governou o Brasil.
Como nenhum outro governante”. Qual ângulo?
Renovação de doutrina antiga. É antiga, muito conhecida, a concepção que
exporei abaixo, mas nos últimos anos vem ganhando teóricos de importância,
entre os quais cabe destacar Javier Gomá Lanzón (em 2012 e 2014 a revista
Foreign Policy, edição em espanhol, colocou-o entre os 50 intelectuais
iberoamericanos mais importantes). Na esteira de muitos outros e até do bom
senso comum, o celebrado erudito espanhol afirma, o mais importante em um
governante é a exemplaridade. Dar bom exemplo, em português singelo. A doutrina
vai além, se há o dever do bem exemplo, o governante que dá mau exemplo causa
dano moral ao povo. Acontece com frequência, o dano moral não vem só. Muitas
vezes há tragédias materiais envolvidas. Em resumo, a exemplaridade é a mais
importante característica do governante. E dar mau exemplo é a pior. O
governante (não só o governante político, todas as pessoas em posição de
destaque, a qualquer título, a começar pelo pai e pela mãe) inspira
comportamentos, favorece hábitos, combate costumes. Para a obtenção do bem
comum de um povo, esse deve ser o grande objetivo do dirigente político. Influi
fundo, marca por décadas, até séculos.
Governo estaqueado na exemplaridade (ou bom
exemplo). Vamos ao que afirma
Javier Gomá Lanzón: “O espaço público está cimentado sobre a exemplaridade,
esse é seu cenário mais genuíno e próprio. A política é a arte da exemplaridade”.
Para estear bem o bom governo, garante o intelectual espanhol, o dirigente deve
“pregar com o exemplo. Só o exemplo prega de forma eficiente”. Promessas,
discursos, atos administrativos, sem o exemplo, caem no vazio. Na Grécia
antiga, da democracia direta, o cidadão participava do governo debatendo e
votando na praça pública (ágora). Nos tempos modernos, de democracia indireta,
igualmente não só o voto configura participação na construção do bem comum.
Debater, opinar, protestar, apresentar programas, sugerir soluções, à maneira
do grego antigo na ágora, também é contribuir para a obtenção do bem comum. Dentro
de tal quadro, dar bom exemplo é a primeira e mais importante participação.
Influi no tom moral da sociedade, na criação de seus rumos e expectativas,
marca o que é estimulado, o que é desaconselhado, o que é proibido. E assim, vai
mais fundo que a coação legal (que age nos atos externos), alcança o interior
das personalidades, pensamentos, anseios, convicções.
O bom exemplo de dom Luiz. Don Luiz participou da obtenção do bem
comum nacional de forma insigne pelo extraordinário bom exemplo de uma vida
inteira. Nesse sentido, padrão moral perene, governou na mais alta acepção. E
os brasileiros de bem, diante de sua memória virtuosa ▬ e de seu governo, como
Chefe da Casa Imperial e sucessor legítimo da Princesa Isabel ▬ inclinam-se hoje
reverentes e agradecidos. Em certo sentido, muito real, continua a governar.
Como seu ancestral, são Luiz IX (1214-1270), cujo bom exemplo até hoje orienta
em alguma medida o espírito dos franceses. Assim, com inteira exatidão, sob o
ângulo do bom exemplo, podemos afirmar, Dom Luiz governou. E ainda governa.
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