terça-feira, 16 de maio de 2017

Servilismo ideológico, combustível do sofrimento popular


Péricles Capanema

Em 1927, Julien Benda publicou na França “Trahison des clercs”, livro controvertido, que fez história. Apontava generalizada a traição dos letrados, cegos à realidade, subservientes diante do poder totalitário. Em linguagem mais atual seriam intelectuais, clérigos, artistas, grandes milionários, cuja ação favorece a servidão comunista. George Orwell os qualificava de esquerda moral: “Os intelectuais são levados para o totalitarismo muito mais que as pessoas comuns”. Raymond Aron acoimou tal fenômeno de “passagem da consciência livre à servidão voluntária”. A trahison des clercs virou moeda corrente na vida pública francesa. A maior rumorosa delas foi a degradação de Jean-Paul Sartre diante das ditaduras comunistas da Rússia e da China. Nelson Rodrigues tachou-o de “canalha translúcido”.

Lembrei-me da expressão ao, confrangido, passar os olhos no volumoso noticiário sobre Antônio Cândido de Mello e Souza (1918-2017), crítico literário, presente na vida pública desde muitas décadas. O comentário do crítico Sérgio Augusto sobre o escritor falecido dá o tom da cobertura: “Era, sem hipérbole, o maior brasileiro vivo. Sua morte, sem clichê, marca o fim de uma era”.

Vejamos seu pensamento. Transcrevo partes de entrevista que concedeu em agosto de 2011: “O socialismo é uma doutrina totalmente triunfante no mundo”. A agressão à realidade não poderia ser maior. Emendou, consertando: “Chamo de socialismo todas as tendências que dizem que o homem tem de caminhar para a igualdade. Comunismo, socialismo democrático, anarquismo, solidarismo, cristianismo social, cooperativismo”. No mínimo está pouco matizada e delirantemente imprecisa a junção indiferenciada de todas as mencionadas correntes na tentativa de esconder o amazônico fracasso socialista. Volta-se então para o capitalismo: “O capitalismo não tem face humana nenhuma. O capitalismo é baseado na mais-valia e no exército de reserva como Marx definiu”. Na vida real, os pobres do mundo tentam entrar de todas as maneiras na nação capitalista, os Estados Unidos. E sempre fugiram como da peste de todas as nações comunistas. Que construíram muros, cercas e treinaram polícias para mantê-los encarcerados no próprio país.

O entrevistado tinha um problema, o socialismo como existiu na prática, dirigindo tudo, invariavelmente oprimiu e empobreceu o povo. Escapou com uma pirueta: “O socialismo só não deu certo na Rússia. Virou capitalismo. A revolução russa serviu para formar o capitalismo. O socialismo deu certo onde não foi ao poder”. Outra vez, oculta o real. A Rússia não foi o único desastre. O socialismo fracassou na proporção de sua realização em todos os países em que foi aplicado.

Antônio Cândido teve o descaramento de propor um modelo “formidável”: “O socialismo humanizou o mundo. Em Cuba eu vi o socialismo mais próximo do socialismo. Cuba é uma coisa formidável, o mais próximo da justiça social. Não a Rússia, a China, o Camboja”. A tirania dos irmãos Castro é o modelo a ser exaltado e copiado.

Coerente na hora de votar: “Quando eu era militante do PT ▬ deixei de ser em 2002, quando o Lula foi eleito ▬ era da ala do Lula, da Articulação, mas só votava nos candidatos da extrema esquerda”. A Articulação é uma espécie da Centrão dentro do PT, tem programa mais gradualista. O crítico literário, na hora do voto, evitava sufragar sua corrente, procurava fortalecer a extrema esquerda. Era ainda coerente com sua matriz ideológica: “Tenho muita influência marxista ▬ não me considero marxista, mas tenho muita influência marxista na minha formação e também muita influência da chamada escola sociológica francesa, que geralmente era formada por socialistas”.

Antônio Cândido aqui é sobretudo um exemplo. Exemplo de dezenas, talvez centenas de milhares de intelectuais, clérigos e milionários brasileiros (no mundo todo, à vera) que, cegos à realidade, trotam fanatizados atrás de delírios sociais igualitários. São corresponsáveis das piores tragédias sociais do século 20 e 21. Dom Paulo Evaristo Arns, que convidou o ateu e em boa parte marxista Antônio Cândido para a Comissão Justiça e Paz da Arquidiocese de São Paulo, foi desses clérigos. Compartilhou o entusiasmo do escritor pela tirania castrista. Em carta ao ditador comunista, derreteu-se o prelado brasileiro: “Aproveito a viagem do frei Betto para lhe enviar um abraço e saudar o povo cubano por ocasião deste 30º aniversário da Revolução. Hoje em dia Cuba pode sentir-se orgulhosa de ser no nosso continente um exemplo de justiça social. A fé cristã descobre, nas conquistas de Revolução, os sinais do Reino de Deus”. E vai por aí afora, num deprimente exemplo de sabujismo a um regime torcionário.

Diante de nossa porta temos o caso da Venezuela, outra aplicação do socialismo. Informa o jornalista venezuelano Moisés Naim no Estadão: “Não é Maduro que importa. Tirá-lo do poder não basta. Ele é simplesmente o bobo útil dos que realmente mandam na Venezuela: os cubanos, os narcotraficantes e a viúvas do chavismo. E, obviamente, os militares ▬, ainda que, tristemente, as Forças Armadas tenham sido subjugadas e estejam a serviço dos verdadeiros donos do país. O componente mais importante dessa oligarquia é o governo cubano. Para Cuba não há prioridade maior que continuar controlando e saqueando a Venezuela. E Havana sabe como fazer isso. Os cubanos aperfeiçoaram as técnicas do Estado policial. Acima de tudo, os cubanos sabem como se proteger de um golpe militar. Não é por acaso que a Venezuela tem hoje mais generais que a OTAN ou os Estados Unidos. Ou que muitos ex-generais estejam exilados. Narcotraficantes. Eles constituem o outro grande poder. Os herdeiros políticos de Chávez são o terceiro grande componente do poder real na Venezuela”. Os cubanos comunistas, lembrando Antônio Cândido, constroem lá agora, uma vez mais, uma sociedade “formidável”.


Termino. Sofremos apocalíptica mistificação, promovida pela opinião que se publica. Opinião pública é outra coisa. Os setores que perenizam a “trahison des clercs” alardeiam humanismo, tolerância, amor aos pobres. É a face da fantasia. Na outra face, a da realidade, tornam possível a implantação do comunismo repressor, implacável, disseminador da miséria. Desmitificá-los de há muito se tornou obra prioritária de salvação nacional e caridade social.

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