Choque da realidade abala utopismo democrático
Péricles Capanema
Imagine um júri popular. O Conselho de
Sentença, vamos supor nove, não sete, como no Brasil, dividido em três partes.
Um terço presta atenção nos argumentos da acusação e da defesa. Outro terço,
enfastiado, faz nenhum esforço para formar juízo. Na hora decidirá. O terceiro,
também sem prestar atenção, vai condenar ou absolver segundo gostou ou não
gostou do jeitão do acusado; na cabeça trotam preconceitos, xodós e birras. O réu
é condenado à morte.
Corta. Ainda sobretudo acadêmica, mas
já com amplos reflexos nos meios de divulgação, está em curso nos Estados
Unidos enorme discussão sobre os fundamentos da democracia moderna. É
instrumento hábil? Em que proporção? Inábil na presente configuração? Por quê?
Como diminuir injustiças e desastres?
Já um pouco antiga, a controvérsia foi
engrossada pelo bem argumentado livro Against
Democracy de Jason Brennan, filósofo político da Universidade de
Georgetown. O estudioso parte de constatação manifestada em pesquisas
provenientes dos mais variados quadrantes. A maior parte dos votantes nos
Estados Unidos não se interessa por eleições e políticos. A mais, na grossa
maioria, os eleitores são ignorantes dos temas em discussão, além de ter
comportamento irracional. Aqui estão suas palavras: “Cientistas políticos,
psicólogos e economistas estudaram a conduta do eleitor por mais de sessenta
anos. Fizeram milhares de estudos, compilaram enorme acervo de dados. Linha
geral, suas conclusões são uniformes e deprimentes. Via de regra os eleitores
são ignorantes, mal informados e preconceituosos”.
Aumentar informação ajuda? Em termos.
As pessoas, é o comum, procuram “digeri-la” dentro dos grupos de que são afins.
E continuam com as mesmas convicções. Finalmente, constata o eleitor, seu voto pesa
quase nada. Outro modo, inexistem incentivos para se informar bem. Resultado, procura
se interessar por outras atividades, que não a vida pública. A situação no
Brasil, ninguém duvida, bem pior.
Brennan recorda, os eleitores não
estão escolhendo o sanduíche que mais lhes apeteceria. O voto decide temas como
a guerra e a paz, rumos de prosperidade ou de pobreza, crescimento ou
estagnação. Ainda, sua decisão, se majoritária, recai sobre os eleitores
contrários, ausentes, crianças, estrangeiros. E aqui o referido autor ilustra
com o exemplo do conselho de sentença, decidindo a vida e a morte de uma
pessoa. Declara-o culpado, mas não pela ponderação dos argumentos. Acrescenta
ele, o mínimo que um réu exige é jurados competentes e de boa fé. Qualquer
advogado de defesa, podendo provar que o conselho de sentença assim agiu,
pediria anulação (pelo menos por lá).
Jason Brennan divide o eleitorado
norte-americano em três categorias: hobbits,
hooligans e vulcans. Os hobbits
(anãozinho mítico) têm pouco ou nenhum interesse em política, baixíssimo nível
de conhecimento político. Os hooligans
(torcedores fanatizados) têm um pouco mais de conhecimento, nenhuma
sofisticação, votam como tomam partido os mais ardidos torcedores de times de
futebol. A soma dos dois constitui a grossa maioria do eleitorado. Os vulcans (vulcões) são os informados, que
votam racionalmente, minoria ínfima. O conjunto é fortemente influenciado por
políticos inescrupulosos e grupos de interesse. Aqui o quadro se agrava com a
presença dos spin doctors nas
campanhas eleitorais modernas. Especialistas em enganar pela distorção e
exageros, manipulam o noticiário para moldar a percepção pública. Conclusão do
especialista: estamos diante de repetidas injustiças contra a população,
decorrentes de concepção erradas e estruturas viciadas. E são insuficientes os
recursos de defesa das democracias contra desatinos decorrentes de sua concepção
e estrutura, como chamados os freios e contrapesos, entre os quais revisões
judiciais, barreiras constitucionais, legislaturas bicamerais, burocracia
autônoma.
Para ele, qual o caminho? A
epistocracia ou epistemocracia. Em resumo, normas de seleção para poder
participar da vida pública. Formas semelhantes já forma propostas ao longo da
História, começando com a república dos sábios de Platão. Nos modernos se
destaca, entre muitos, John Stuart Mill. O voto qualificado, outra tentativa,
existiu em vários países. Reflexo discreto de tal concepção, na Inglaterra o
aluno de Oxford podia votar duas vezes até décadas atrás.
Jason Brennan propõe como medida
preliminar um teste mínimo de conhecimento político. Quem passasse, votaria.
Reprovado, poderia tentar outras vezes. Argumenta ele, na prática já se aplica
tal critério nos Estados Unidos. Antes dos 18 anos, ninguém vota lá. O que é
isso? Parece simples bom senso, à vera decorre da noção de que a imaturidade e
a ignorância impedem o exercício do voto; mais ainda, a participação nos
destinos nacionais. Lembra, milhões de norte-americanos adultos são mais
ignorantes e imaturos que milhões de jovens menores de 18 anos. Outra, o
imigrante legal só pode votar se passar por um teste de civismo. A maioria dos
norte-americanos nele seria reprovada. Qual a razão para não aplicar a mesma
lógica a toda a população? Na vida privada, sempre agimos assim. Se aparece um
problema hidráulico na casa, chamamos o encanador. Doentes dos olhos, corremos
ao oculista. Jason quer o mesmo critério na vida pública.
O autor defende a democracia norte-americana,
não em sua atual configuração. Contesta dela ainda certos princípios, afirmando
que a História revelou podridão em suas raízes. Desmitifica-a, para ele mero instrumento,
cheio de lacunas (que pretende combater), destinado a produzir políticas
eficientes. Acha absurdo o culto que lhe é prestado, uma espécie de “religião
oficial do Ocidente”. Compara-a a um martelo. Ele deve pregar bem os pregos. Se
encontrarmos um martelo melhor, trocamos. Assim como nos Estados Unidos,
deveríamos nós aqui também abrir um debate, deslocando-a do terreno do mito,
enraizado no pensamento mágico e não na realidade percebida, cujo efeito é lançar
a cabeça no mundo imaginário e os pés num beco sem saída. Seria uma boa maneira
de tirar peso dos ombros do povo.
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