sábado, 13 de maio de 2017

Choque da realidade abala utopismo democrático

Choque da realidade abala utopismo democrático

Péricles Capanema

Imagine um júri popular. O Conselho de Sentença, vamos supor nove, não sete, como no Brasil, dividido em três partes. Um terço presta atenção nos argumentos da acusação e da defesa. Outro terço, enfastiado, faz nenhum esforço para formar juízo. Na hora decidirá. O terceiro, também sem prestar atenção, vai condenar ou absolver segundo gostou ou não gostou do jeitão do acusado; na cabeça trotam preconceitos, xodós e birras. O réu é condenado à morte.

Corta. Ainda sobretudo acadêmica, mas já com amplos reflexos nos meios de divulgação, está em curso nos Estados Unidos enorme discussão sobre os fundamentos da democracia moderna. É instrumento hábil? Em que proporção? Inábil na presente configuração? Por quê? Como diminuir injustiças e desastres?

Já um pouco antiga, a controvérsia foi engrossada pelo bem argumentado livro Against Democracy de Jason Brennan, filósofo político da Universidade de Georgetown. O estudioso parte de constatação manifestada em pesquisas provenientes dos mais variados quadrantes. A maior parte dos votantes nos Estados Unidos não se interessa por eleições e políticos. A mais, na grossa maioria, os eleitores são ignorantes dos temas em discussão, além de ter comportamento irracional. Aqui estão suas palavras: “Cientistas políticos, psicólogos e economistas estudaram a conduta do eleitor por mais de sessenta anos. Fizeram milhares de estudos, compilaram enorme acervo de dados. Linha geral, suas conclusões são uniformes e deprimentes. Via de regra os eleitores são ignorantes, mal informados e preconceituosos”.

Aumentar informação ajuda? Em termos. As pessoas, é o comum, procuram “digeri-la” dentro dos grupos de que são afins. E continuam com as mesmas convicções. Finalmente, constata o eleitor, seu voto pesa quase nada. Outro modo, inexistem incentivos para se informar bem. Resultado, procura se interessar por outras atividades, que não a vida pública. A situação no Brasil, ninguém duvida, bem pior.

Brennan recorda, os eleitores não estão escolhendo o sanduíche que mais lhes apeteceria. O voto decide temas como a guerra e a paz, rumos de prosperidade ou de pobreza, crescimento ou estagnação. Ainda, sua decisão, se majoritária, recai sobre os eleitores contrários, ausentes, crianças, estrangeiros. E aqui o referido autor ilustra com o exemplo do conselho de sentença, decidindo a vida e a morte de uma pessoa. Declara-o culpado, mas não pela ponderação dos argumentos. Acrescenta ele, o mínimo que um réu exige é jurados competentes e de boa fé. Qualquer advogado de defesa, podendo provar que o conselho de sentença assim agiu, pediria anulação (pelo menos por lá).

Jason Brennan divide o eleitorado norte-americano em três categorias: hobbits, hooligans e vulcans. Os hobbits (anãozinho mítico) têm pouco ou nenhum interesse em política, baixíssimo nível de conhecimento político. Os hooligans (torcedores fanatizados) têm um pouco mais de conhecimento, nenhuma sofisticação, votam como tomam partido os mais ardidos torcedores de times de futebol. A soma dos dois constitui a grossa maioria do eleitorado. Os vulcans (vulcões) são os informados, que votam racionalmente, minoria ínfima. O conjunto é fortemente influenciado por políticos inescrupulosos e grupos de interesse. Aqui o quadro se agrava com a presença dos spin doctors nas campanhas eleitorais modernas. Especialistas em enganar pela distorção e exageros, manipulam o noticiário para moldar a percepção pública. Conclusão do especialista: estamos diante de repetidas injustiças contra a população, decorrentes de concepção erradas e estruturas viciadas. E são insuficientes os recursos de defesa das democracias contra desatinos decorrentes de sua concepção e estrutura, como chamados os freios e contrapesos, entre os quais revisões judiciais, barreiras constitucionais, legislaturas bicamerais, burocracia autônoma.

Para ele, qual o caminho? A epistocracia ou epistemocracia. Em resumo, normas de seleção para poder participar da vida pública. Formas semelhantes já forma propostas ao longo da História, começando com a república dos sábios de Platão. Nos modernos se destaca, entre muitos, John Stuart Mill. O voto qualificado, outra tentativa, existiu em vários países. Reflexo discreto de tal concepção, na Inglaterra o aluno de Oxford podia votar duas vezes até décadas atrás.

Jason Brennan propõe como medida preliminar um teste mínimo de conhecimento político. Quem passasse, votaria. Reprovado, poderia tentar outras vezes. Argumenta ele, na prática já se aplica tal critério nos Estados Unidos. Antes dos 18 anos, ninguém vota lá. O que é isso? Parece simples bom senso, à vera decorre da noção de que a imaturidade e a ignorância impedem o exercício do voto; mais ainda, a participação nos destinos nacionais. Lembra, milhões de norte-americanos adultos são mais ignorantes e imaturos que milhões de jovens menores de 18 anos. Outra, o imigrante legal só pode votar se passar por um teste de civismo. A maioria dos norte-americanos nele seria reprovada. Qual a razão para não aplicar a mesma lógica a toda a população? Na vida privada, sempre agimos assim. Se aparece um problema hidráulico na casa, chamamos o encanador. Doentes dos olhos, corremos ao oculista. Jason quer o mesmo critério na vida pública.


O autor defende a democracia norte-americana, não em sua atual configuração. Contesta dela ainda certos princípios, afirmando que a História revelou podridão em suas raízes. Desmitifica-a, para ele mero instrumento, cheio de lacunas (que pretende combater), destinado a produzir políticas eficientes. Acha absurdo o culto que lhe é prestado, uma espécie de “religião oficial do Ocidente”. Compara-a a um martelo. Ele deve pregar bem os pregos. Se encontrarmos um martelo melhor, trocamos. Assim como nos Estados Unidos, deveríamos nós aqui também abrir um debate, deslocando-a do terreno do mito, enraizado no pensamento mágico e não na realidade percebida, cujo efeito é lançar a cabeça no mundo imaginário e os pés num beco sem saída. Seria uma boa maneira de tirar peso dos ombros do povo.

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