Cabeça fria
Péricles Capanema
O Reino Unido está potencialmente fora
da União Europeia (UE), 51,9 a 48,1% a favor da saída. No fundo, ninguém
acreditava que depois de uma permanência de 43 anos, ele lhe viraria as costas.
O mundo amanheceu em estado de choque.
Ou foram apenas a Inglaterra e o País de Gales? De fato, o Reino Unido da Grã Bretanha e Irlanda do Norte, Estado soberano, é composto de quatro nações constituintes, chamadas países ou home nations. A Inglaterra pode sair
só? E o País de Gales? Os dois outros países votaram pela permanência. Nicola Sturgeon,
primeira-ministra da Escócia anunciou “discussões imediatas” com Bruxelas e
países da UE para “proteger o lugar do país no bloco”. Confirmou: “O segundo
referendo de independência é claramente uma opção que deve estar sobre a mesa,
e está sobre a mesa”. Por sua vez, a Irlanda do Norte também abriga setores
importantes que desejam se unir à República da Irlanda, membro da UE. Esta mesma
divisão se manifestou candente quanto a regiões, grandes cidades versus
interior, faixas de idades, faixas de renda, faixas de escolaridade.
Ou seja, esfacelou-se política e
socialmente o Reino Unido e já apareceram iniciativas querendo consertar o
estrago. Circula petição ao Parlamento para que novo plebiscito seja convocado,
passam de 2,5 milhões as assinaturas (na hora que escrevo). Esperam que o
inglês, repensando o voto, anule o antes impensável, por ora aparentemente
irreversível.
O terremoto inglês causou tremores na
Europa inteira: existem movimentos reclamando plebiscitos em vários países. Putin
dispõe de momento de mais liberdade de ação.
O que virá? Ninguém sabe, confusão nos
mercados, nas chancelarias e nas cabeças. Pensar é distinguir. Então, vamos pensar,
distinguindo, destacando em particular dois pontos.
Afirmam analistas, a razão maior do voto Brexit foi o
temor xenófobo da imigração descontrolada no Reino Unido que ameaçaria empregos,
serviços sociais e a cultura do país. Em termos. Os jovens, ainda que os
maiores ameaçados pela perda de empregos, votaram maciçamente para permanecer. Pesou
aqui o cosmopolitismo. E os velhos, boa parte já aposentada, sentiriam então mais
a ameaça cultural e votaram em maioria pelo Brexit. As grandes capitais, de
maioria cosmopolita, pela permanência; o interior, apegado aos costumes, pela
saída. A mais, a muitos irritava a ditadura burocrática de Bruxelas, 40 mil
funcionários e, em alguns, a agenda libertária.
Mudo o ponto de vista. Alguns comentaristas destacam,
vejo razão neles, pesou em proporção difícil de avaliar a nostalgia da
Inglaterra tradicional, poderosa, com seu traço de insularidade e soberania altiva.
Com efeito, deixaram marcas profundas na mentalidade inglesa a Guerra dos Cem Anos,
o episódio da Invencível Armada, as disputas com Luís XIV, as batalhas contra Napoleão,
a oposição à Alemanha na 1ª Grande Guerra, a luta contra Hitler. Exprimem a posição
de um país que se sente ameaçado pela potência dominante no Continente. Este tipo
de inglês cansou de se sentir dependente de Bruxelas. Em reto, o passado
cobrou sua fatura. É antipático? Não, de si é saudável a afirmação da
personalidade própria e a defesa de suas liberdades e direitos. Nesse aspecto,
merece simpatias o voto Brexit.
Viro a página. A Europa sempre teve necessidade de
alguma união política para garantir a convivência interna civilizada e ser
escudo contra agressões de inimigos. Tal necessidade, ideal perene, esteve
entre os fundamentos da multissecular política da República de Roma, depois do
Império Romano e foi aspiração carolíngia, bafejando a coroação de Carlos Magno
no Natal do ano 800 pelo Papa Leão III.
Inspirou o Sacro Império, fez parte da política secular dos Habsburgos. Napoleão
representou concepção desnaturada do mesmo anseio. Hitler também dele se
aproveitou criminosamente. Em dito contexto, os Papas em muitas épocas e
ocasiões foram ponto de união, harmonização e defesa da Europa. São exemplos o
encontro de são Leão Magno com Átila em 452 e a ida de Henrique IV a Canossa em
1077 para pedir perdão a são Gregório VII..
Na recente
crise ucraniana, Putin sentiu a força dessa política multissecular. Em Moscou,
diante do autocrata russo, maio de 2015, Angela Merkel, de alguma maneira
falando pela Europa, advertiu-o com nota intimidadora: “Nos últimos anos
procuramos de modo crescente a cooperação [da Rússia e Alemanha]. A anexação
criminosa e ilegal da Crimeia e a guerra na Ucrânia oriental representaram
séria derrota nessa cooperação”. Aliás, até agora foram dela as mais sensatas e
construtivas palavras na presente crise: “A União Europeia não precisa ser dura
com os britânicos”.
Não
convém subestimar o perigo latente. A saída da Inglaterra pode ser enorme passo
no rumo do desconjuntamento e da desagregação europeia, que entre outras sequelas
ficaria mais exposta ao poder russo, em especial Polônia, Hungria, países
bálticos, países nórdicos. A Europa estaria ainda em condições pioradas para
fazer frente ao poder islâmico expansionista e às manobras imperialistas de
Beijing.
De
outro lado, a advertência do voto inglês pode ter efeito saudável. Como
instância suprema, à Europa não ajuda um poder intervencionista, burocrático,
libertário em temas morais. Precisa, isso sim, de um poder de harmonização e
defesa que respeite o princípio de subsidiariedade, bem como tenha em
consideração direitos de povos, regiões e famílias.
Havendo
saída de algum país, que sejam preservados os mais decisivos interesses
europeus; se houver permanência, que daqui em diante não sejam mais lesionados
direitos de povos, regiões e famílias.
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