Os
amanhãs obsoletos da América Latina
Péricles
Capanema
Até mesmo fora de círculos ufanistas, a
América Latina foi celebrada continente do futuro; hoje, tadinha, retardatária,
é região de amanhãs obsoletos e melancólicos. Não sou de mascarar realidade,
nem de minimizar perigos; sobre ela em sentido real se abriu a caixa de
Pandora. Espiando mais de perto, sofre doença degenerativa; vai ficando para
trás. A solução é sarar da mazela, até lá morreu Neves. Temos ali sociedade
cada vez mais libertária, relativista e afundada em confusão religiosa
espantosa. Para piorar, por décadas, países da região vêm sendo descaminhados
por governos quando menos doidamente populistas e dirigistas. Tais governos em
geral propugnam um nacional-desenvolvimentismo arrogante com escoro em montes
de improvisações voluntaristas e autoritarismo minucioso. A versão alucinada é
o castrismo; a pobre Cuba virou laboratório de mitomaníacos que, in anima vili, fizeram experiências
sociais delirantes; a nação esfrangalhada está afundada na pobreza negra e na
desagregação social; vive de esmolas: cubanos exilados, Venezuela, Rússia,
Brasil, fora o resto. No carreiro, surtos de febre alta, feito o chavismo ou
bolivarianismo, já serão daqui a pouco uns vinte anos de desgraceira cabotina,
primeiro debaixo do relho do ditador desatinado, Hugo Chávez, um Perón bem mais
doentio, sucedido pelo primário Nicolás Maduro. E, de passagem, largo de lado,
já lá longe, governos com orientação afim, igual Torres, Velasco Alvarado, a
política malucamente coletivista de Salvador Allende, batelada grossa
engarranchada no atraso. Hoje em dia, inda na vanguarda do atraso, Evo Morales,
Daniel Ortega, Rafael Correa, certo sentido, José Mujica. O Chile andava meio
vacinado contra a toxina populista, mas logo pode ter recaída. Também
demolidoras no seu conjunto as políticas de Lula e de Dilma, a dirigista
desastrada, um Geisel piorado, do casal Kirchner e vai por aí afora. Costumo
lembrar, é endemia de contágio fácil e cura difícil esta gororoba de
nacionalismo, militarismo populista, marxismo, arremedos de cristianismo e
guevarismo; doses diferentes em cada caso. Em amigações espúrias, grassa com
frequência o auxílio de companheiros de viagem durante o ladeira abaixo; na
resvaladura vão digerindo as apetitosas vantagens abocanhadas em troca do
oportunista apoio oferecido. E ainda de incontáveis inocentes úteis, cuja
colaboração ingênua pavimenta a via
crucis das populações do continente. Até o momento, salvantes os irmãos
Castro, cinicamente tiranos, essas ditaduras encapuzadas, desde a nascente
useiras e vezeiras do totalitarismo normativo, são farsas que galhardeiam
respeito pelas regras da democracia, enquanto, no encalço inescrupuloso da
hegemonia, trabalham para acabar com a separação e independência dos poderes,
sufocar a liberdade de imprensa, cercear a liberdade religiosa e a de
expressão, eliminar o respeito aos contratos, suprimir as garantias à
propriedade e tornar inócua a livre associação política. Eleições fraudadas no
conteúdo de autêntica manifestação popular, mas em que se conservam as
aparências da livre expressão dos votos, somadas à farsa grotesca do emprego
direcionado dos instrumentos da chamada democracia participativa legitimam tais
regimes aos olhos desatentos do mundo desenvolvido. A fórmula da derrocada, no
substrato, é a mesma; varia só o grau da virulência. No comum têm à frente
craques no ilusionismo político, fascinantes pajés de eflúvios apatetadores.
Balançando com descaro a bandeira da pena dos pobres, da qual pretendem o
monopólio, enfeitiçam as populações ao prometer satisfação imediata das necessidades
mais urgentes, fundeados no mito voluntarista da onipotência estatal, a rançosa
crendice no poder mágico do Estado ou do führer,
duce, grande timoneiro, comandante,
seja lá o que for. Com os problemas reais, o usual é escapulir deles
irresponsavelmente pela política do avestruz. Outros sintomas da doença: a
discurseira entulhada de compromissos ocos substitui as garantias reais aos
investimentos privados, a gastança estatal asfixia os investimentos públicos, a
incompetência e o ideologismo obcecado estancam na educação a melhoria do
ensino e, normal, da qualidade da mão-de-obra; de mais, a política externa
estribada na parlapatice terceiro-mundista faz escolhas danosas ao crescimento
e à segurança do país. Na esteira, cascata de desgraças: produtividade
estancada, competitividade prejudicada, marasmo econômico, deterioração do
mercado de trabalho, desemprego maquiado, estatais viradas em mastodontes
pesando na cacunda do povão, contas públicas em frangalhos encobertas por
truques contábeis, total descrédito da política econômica com os homens da
experiência e da ciência, serra acima no consumo de drogas, mocidade sem
futuro, parte boa dos mais capazes se aventurando lá fora. Ainda sequelas desse
curso, só mais irritantes: desabastecimento, racionamento crescente até de
produtos básicos, tumefação da criminalidade. Por essas e outras, são décadas
perdidas, com âncora nas armas (caso especial de Fidel Castro), assim como
sobretudo em programas assistencialistas demagógicos que enleiam em boa medida
um corpo eleitoral, com ilhas de exceção, pouco instruído, desinteressado dos
assuntos públicos, fortemente sugestionável. Nesse clima, incha sem parar um
fenômeno macabro, dele hoje são exemplos maiores Cuba e Venezuela (no mundo, a
Coreia do Norte): a mordaça na sociedade, mantida apertada de jeito prevalente
pelo expurgo dos opositores das posições de relevo e pela casta dos
privilegiados, membros das nomenclaturas socialistas, modernos feitores da
partidocracia pelega; são em verdade escravos-escravizadores encarapitados em
postos de proa nas Forças Armadas, na administração pública direta e indireta,
nas direções sindicais, bem como no Partido e até no Judiciário. A mais, no
estirão liberticida proliferam enxames de tonton
macoutes do oficialismo, as intimidantes milícias de adeptos brucutus,
aterrorizando com sanha particular em bairros populares, bem como os pelotões
das canetas alugadas na rede, nos jornais, revistas e TVs sabujas. Falta botar
em destaque, num continente de ampla maioria de católicos, a já quase
centenária faina da esquerda católica que ─ com lastro em noções furadas de
caridade e justiça ─ contamina faixas largas do público, e com isso socorre o
movimento esquerdista, com quadros de expressão, militantes a rodo e áreas de
voto; de modo particular promovendo metamorfoses decisivas em correntes de
opinião e até no temperamento público. Ao fortalecer orientações estatizantes
que sufocam a prosperidade, a grande geradora de emprego e renda, atrasa a
inclusão social. E com isso turbina brutal concentração dos ganhos e da
propriedade nas mãos do Estado. Esbofeteia, assim, o
princípio de subsidiariedade, presente de alto a baixo na doutrina social
católica, que estabelece o papel suplementar do Estado em relação à família e
demais sociedades intermediárias nas várias esferas da vida social. Na
retórica, a opção preferencial pelos pobres; na prática, decênios de
empedernida orientação que atrapalha a criação da riqueza. Na conta final, vem
espoliando o futuro de milhões do seu direito básico de crescer na vida; tapa os ouvidos aos clamores autênticos
dos pobres. Tal labuta do
progressismo católico e de suas versões exacerbadas nas comunidades de base e
nos teólogos da libertação tem sido o que mais prejudica o combate real à
pobreza na América Latina. Reações e choques? Pois é, atinente ao Estado
inchado e parasitário, cardumes enormes não relacionam o paquiderme estatal com
o engessamento da economia e, inevitável, não enxergam relação de causa e
efeito entre o estatismo desbragado e suas preocupações imediatas: emprego,
saúde, moradia, transporte, carestia (primacial, a inflação dos alimentos),
drogas, segurança, educação, ética. Reações ainda comuns, mas escapistas, o
vezo da transferência de culpa pela invenção descarada de bodes expiatórios
para os renitentes fracassos (capitalismo anglo-saxão, as 200 famílias,
multinacionais, o polvo Light, os coronéis, as oligarquias, a educação
hispânica, e vai por aí afora). Surgem ainda, agora sintomas bons, fortes
especialmente em setores médios, nojo contra a corrupção, o favoritismo
debandado, as relações promíscuas com organizações criminosas, o aparelhamento
da máquina do poder, as gastanças demagógicas, os rombos orçamentários nos
vários níveis da administração; igual os machuca a incompetência gerencial das
despreparadas equipes de governo, redadas de apaniguados bisonhos das direções
partidárias que tecem um compadrio de cumplicidades de arrivistas, aventureiros
e ideólogos lunáticos e infestam com seu voluntarismo e improvisação os
milhares de cargos de livre provimento. No curto, o crescimento dessas pobres
nações no fim da fila, quando germina, vem da energia latente na sociedade,
vencendo até mesmo a desorganização dos governos intoxicados por doses
diferentes do esquerdismo populista. E já por dezenas de anos temos um
continente emperrado, amontoando heranças malditas, via de regra se opondo ao
esboroamento mais por espasmos temperamentais efêmeros, seguidos de desalentos,
que por razões enraizadas em princípios, o que o atasca no lameiro a que foi
empurrado.
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