A privatização à brasileira
na berlinda
Péricles Capanema
Porfia indispensável. Não serei (apenas) repetitivo; do meio para
o fim do texto haverá coisa nova e inédita no texto, ponto de partida em brasa para
debate inafastável. Alguma coisa, lamento, vou precisar repetir. Lamento, em
termos. Nelson Rodrigues me socorre: “A minha
imaginação é rala. E que faço? O meu processo é repetir”. Em números
redondos, há uns dez anos comecei a denunciar no “Blog do Péricles Capanema” (artigos
reproduzidos em outros poucos meios de divulgação; martelei 35 vezes, se não me
engano) ponto explosivo e até hoje silenciado, de forma que beira ao criminoso:
a privatização no Brasil estava sendo, em larga medida, uma grande farsa. É
embuste de muitos anos, um verdadeiro despotismo midiático, impostura perigosa ao
bem comum, mais especificamente à defesa dos interesses pátrios e à soberania nacional.
Barreira contra ameaças iminentes e perigos potenciais
remotos. Avançando um pouco no
mesmo rumo, lesivo à segurança nacional, conceito estratégico fundamental,
muito benéfico e esclarecedor, se escoimado de excessos e desvios que por vezes
o macularam. Aliomar Baleeiro, jurista seguro, descreveu-a com felicidade no RE
62.731: “O conceito de segurança nacional envolve toda a matéria pertinente à
defesa da integridade do território, independência, sobrevivência e paz do
País, suas instituições, valores materiais ou morais contra ameaças externas e
internas, sejam elas atuais e imediatas ou ainda em estado potencial próximo ou
remoto".
Privatização à brasileira, processo doentio. Em textos anteriores, qualifiquei esse
processo doentio de privatização à brasileira, para a distinguir de outras
privatizações idôneas. A bem dizer, ninguém urrava nem sussurrava o óbvio
ululante: as empresas estatais brasileiras estavam sendo vendidas, em boa medida,
a empresas estatais estrangeiras, em especial a estatais chinesas. Havia
transferência de domínio de empresas brasileiras para estatais de outros
países, havia ainda abundante entrega de concessões para elas. Governos
estrangeiros, em particular o chinês, teriam influência importante na economia
brasileira, e por ricochete, na política e na vida cidadã brasileiras. Era questão
de tempo, o processo implicava uma flechada no coração de nossa soberania.
A epidemia brasileira do estatismo “à outrance”
na origem do nosso atraso e tendência ao retrocesso. Uma paradinha. De passagem, aclaro e
reitero: sou entusiasta da privatização, considero benéfica a mas dilatada presença
de capitais privados nacionais e estrangeiros na vida econômica do país; o Estado
terá na economia ação indispensável, mas supletiva. E deve cuidar do que lhe é próprio
e só ele pode fazer, como defesa nacional e relações exteriores. Sempre tive
horror à sanha estatizante e intervencionista no Brasil ▬ a mania obscurantista
da proliferação das BRAS e dos pacotes salvacionistas, fórmulas econômicas tupiniquins
que bem poderiam ser denominadas de corridas estacionárias, muito esforço e
muita marcha, mas sem sair do lugar. Foram sempre aplicadas por governos esquerdistas
e infelizmente, amiúde, também têm presença em administrações de cunho
nacionalista. Adiante.
Truque
tosco e repetido, troca de estatais brasileiras por estatais estrangeiras. Postei o primeiro artigo de denúncia da
fraude aludida em 10 de dezembro de 2015, intitulado “Desnacionalização
suicida”. Nele afirmava em síntese tudo o que disse depois (por isso vou me
plagiar agora e bastante): “Nunca fui nacionalista; vejo com simpatia a
presença de empresas estrangeiras entre nós. Mas o caso agora é outro. Em 25 de
novembro último [2015], o governo colocou à venda concessões por 30 anos para
as usinas de Ilha Solteira. Jupiá, Três Marias, Salto Grande, vinte e nove
hidrelétricas no total. Ganharam o leilão CEMIG (estatal), COPEL (estatal),
CELG (estatal), CELESC (estatal), ENEL (forte presença do governo italiano) e
THREE GORGES (estatal chinesa). A estatal chinesa ficou com 80% da energia e
pagou R$13,8 bilhões pela outorga. Vejam esta falácia lida por milhares, quem
sabe milhões, ilustra como os meios de divulgação vêm tratando o caso: ‘Com os
ativos recém-adquiridos, a CTG [China Three Gorges, a estatal chinesa] atinge
capacidade instalada de 6.000 W, tornando-se a segunda maior geradora privada
do país’. Privada, uma ova; é estatismo do pior, mais danoso que o estatismo
brasileiro. A esquerda não solta um pio a respeito desta gritante
desnacionalização, que carrega no bojo potencial e gravíssima ingerência
externa em assuntos internos. [...] Repito, o episódio das três gargantas que
engoliram de uma só vez parte do potencial elétrico do Brasil não é isolado. As
estatais chinesas estão ativamente comprando propriedades entre nós nas mais
variadas áreas [e obtendo concessões]. Na década de 70 foi usual a palavra
finlandização. A Finlândia havia perdido mais de 10% de seu território para a
Rússia, quase 20% de seu parque industrial e, pelo temor do vizinho ameaçador e
poderoso, acertava sempre o passo com Moscou, não importava o que fizessem os
tiranos comunistas. Aquele antigo e civilizado país, formalmente soberano, de
fato padecia uma forma larvada de protetorado”.
Protetorado, o previsível futuro do retrocesso.
Continuava: “Queiramos ou não, a mesma situação, ainda que incipiente, ocorre
no Brasil. Com a enorme e cada vez maior presença econômica do Estado chinês
entre nós, vai chegar o dia em que o país, em numerosos assuntos internos, vai
ter diante de si potência mundial imperialista. E, se colocarmos como padrão
como trata os governos esquerdistas e comunistas, facilmente imaginaremos a
subserviência diante do poderio chinês. Cortando caminho, vilmente protegido
pelo mutismo da covardia e da cumplicidade, está em curso entre nós um processo
que vai levar à perda efetiva da soberania nacional. No fundo do horizonte,
terrível perspectiva, nos espera o protetorado envergonhado, mesmo que
cuidadosamente disfarçado.” Seria uma espécie e finlandização à brasileira.
Notícia dinamite. Tudo o que está acima tem potencial explosivo.
Mas não é a notícia dinamite que vou indicar agora aos leitores. O ponto
explosivo de hoje é outro. Existe no ordenamento jurídico nacional uma
legislação especial, qualificada pelo ministro Luiz Fux e ainda por outros
juristas de regra suprajurídica ▬ ou seja, paira como critério maior de
interpretação sobre o restante da legislação ▬ intitulada LINDB (Lei de
Introdução às Normas do Direito Brasileiro).
A LINDB desobedecida. Dela respigo aqui dois artigos. Artigo 5º:
“Na aplicação da lei, o juiz atenderá aos fins sociais a que ela se dirige e às
exigências do bem comum”. Comentando o artigo, o já referido Luiz Fux escreve
de forma incontrovertível: “A lei deve ser aplicada em função dos fins sociais
a que ela se destina”. De outro modo, a interpretação e aplicação da lei estará
em sintonia com a “mens legislatoris”, a intenção do legislador. A mesma LINDB
tem o seguinte comando (artigo 11, §2º): “Os Governos estrangeiros, bem como as
organizações de qualquer natureza, que eles tenham constituído, dirijam ou
hajam investido de funções públicas, não poderão adquirir no Brasil bens
imóveis ou susceptíveis de desapropriação”. A intenção do legislador fica
clara: o Brasil não tolera governos estrangeiros proprietários de bens imóveis
ou bens que possam ser desapropriados. E nem pode comprar imóvel ou bem
desapropriável, organização, não importa a natureza dela, dirigida por governo estrangeiro.
Cidadão estrangeiro, empresa privada estrangeira, pode. Governo estrangeiro,
não. A razão é de evidência solar: o Brasil não tolera ingerência direta ou por
meios indiretos de potência estrangeira (governos) em seus assuntos internos. O
legislador tornou então inequívoca sua intenção: o governo estrangeiro não pode
constituir (nem dirigir) organização de qualquer natureza e por meio dela
adquirir bens imóveis ou susceptível de desapropriação. Aqui está o ponto
explosivo: Por exemplo, a ENEL é dirigida pelo governo italiano, seus diretores
são pelo governo nomeados, aa estatais chinesas são empresas constituídas e
dirigidas pelo governo chinês. Estão comprando propriedades no Brasil ou
participando de leilões com concessão de 30 anos (renováveis). A concessão não
acarreta o domínio, mas quem manda na empresa concessionária por 30 anos (ou
mais) é o governo estrangeiro. Há fundos árabes soberanos (propriedade de
governos) comprando empresa ou refinarias. Potencial ou realmente, são governos
estrangeiros influindo em assuntos internos. Tudo isso fere o §2º do artigo 11
da LINDB, como veremos em detalhes abaixo. É ilegal.
Atos nulos em pencas. Tais atos de compra de propriedade ou de
participação em leilões de concessões agrediram “os fins sociais” visados pelo
legislador. Contrariam o bem comum. S. m. j., foram ilegais; no caso, são nulos
da nulidade absoluta; não podem ser convalidados. De outro lado, há um pântano
jurídico gigantesco a ser secado. São décadas de ilegalidade, em que houve capitais
aplicados, contratos firmados, fazendo nascer, entre muitos outros, problemas
de segurança jurídica, equidade, sopesamento de direitos, interesse público.
Esbofeteadas a norma e a “mens legislatoris”. A lei é clara na redação e, de outro lado, está
clara a “mens legislatoris”. Aristóteles dizia, mais importante que a letra da
lei é a intenção do legislador. E o legislador quis, no caso em tela, repito,
evitar por inteiro a intervenção de governos estrangeiros no interior da
sociedade brasileira. “Os governos estrangeiros, bem como as organizações de
qualquer natureza que eles tenham constituído, dirijam”. Aqui estão incluídas as empresas estatais. E
não vale o argumento pífio que precisariam ter “funções públicas”. A conjunção
é “ou”, um ou outro caso, valem os dois casos, e não “e”, seria ainda
necessário que tivessem funções públicas. Em resumo, não podem adquirir propriedades.
Mais ainda, obedecida a “mens legislatoris” não podem também participar em
leilões de venda de concessões ▬ condição emergente e imprevista por ocasião da
feitura da lei, mas de solução, tudo o indica, clara e fácil. Um governo, por
meio de gigantescas empresas concessionarias que controla por décadas, pode
atuar nos negócios internos da nação. É o que a lei quis impedir de todos os
modos.
Horizontes claros, a reivindicação final. Falem os entendidos e não só da área
jurídica. Também fale sem timidezes quem tenha responsabilidade relevante em
relação ao bem comum. O que, no Direito francês, com pequena adaptação se chama
“droit de regard” ▬ direito de olhar, de se preocupar com o assunto. Falem com
ciência, experiência, responsabilidade, sem preconceitos, sem subserviência,
sem oportunismo. Está óbvia a magnitude do problema. O começo da solução está à
vista, é mister aplicar ao caso a determinação do artigo 5º da LINDB, obedecer
com inteireza aos “fins sociais” de ordem pública buscados pelo legislador, bem
como às exigências do bem comum. E ainda se sujeitar sem subterfúgios ao §2º do
artigo 11 da mesma lei. O objeto do artigo foi só um: pôr as primeiras pedras de
uma estrada a ser construída por meio de diálogo arejado e amplo, mas norteador,
que favoreça o avanço civilizatório do Brasil, fiel às suas raízes, para que se
mantenha assegurada a liberdade pessoal e a soberania pública. Privatização
idônea, sim; finlandização, não. Continuar a patinhar na ilegalidade, também
não. A situação descrita é prenhe das mais graves consequências para o porvir nacional.
Que Deus nos ajude!
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