domingo, 9 de junho de 2024

A privatização à brasileira na berlinda

 

A privatização à brasileira na berlinda

 

Péricles Capanema

 

Porfia indispensável. Não serei (apenas) repetitivo; do meio para o fim do texto haverá coisa nova e inédita no texto, ponto de partida em brasa para debate inafastável. Alguma coisa, lamento, vou precisar repetir. Lamento, em termos. Nelson Rodrigues me socorre: “A minha imaginação é rala. E que faço? O meu processo é repetir”. Em números redondos, há uns dez anos comecei a denunciar no “Blog do Péricles Capanema” (artigos reproduzidos em outros poucos meios de divulgação; martelei 35 vezes, se não me engano) ponto explosivo e até hoje silenciado, de forma que beira ao criminoso: a privatização no Brasil estava sendo, em larga medida, uma grande farsa. É embuste de muitos anos, um verdadeiro despotismo midiático, impostura perigosa ao bem comum, mais especificamente à defesa dos interesses pátrios e à soberania nacional.

 

Barreira contra ameaças iminentes e perigos potenciais remotos. Avançando um pouco no mesmo rumo, lesivo à segurança nacional, conceito estratégico fundamental, muito benéfico e esclarecedor, se escoimado de excessos e desvios que por vezes o macularam. Aliomar Baleeiro, jurista seguro, descreveu-a com felicidade no RE 62.731: “O conceito de segurança nacional envolve toda a matéria pertinente à defesa da integridade do território, independência, sobrevivência e paz do País, suas instituições, valores materiais ou morais contra ameaças externas e internas, sejam elas atuais e imediatas ou ainda em estado potencial próximo ou remoto".

 

Privatização à brasileira, processo doentio. Em textos anteriores, qualifiquei esse processo doentio de privatização à brasileira, para a distinguir de outras privatizações idôneas. A bem dizer, ninguém urrava nem sussurrava o óbvio ululante: as empresas estatais brasileiras estavam sendo vendidas, em boa medida, a empresas estatais estrangeiras, em especial a estatais chinesas. Havia transferência de domínio de empresas brasileiras para estatais de outros países, havia ainda abundante entrega de concessões para elas. Governos estrangeiros, em particular o chinês, teriam influência importante na economia brasileira, e por ricochete, na política e na vida cidadã brasileiras. Era questão de tempo, o processo implicava uma flechada no coração de nossa soberania.

 

A epidemia brasileira do estatismo “à outrance” na origem do nosso atraso e tendência ao retrocesso. Uma paradinha. De passagem, aclaro e reitero: sou entusiasta da privatização, considero benéfica a mas dilatada presença de capitais privados nacionais e estrangeiros na vida econômica do país; o Estado terá na economia ação indispensável, mas supletiva. E deve cuidar do que lhe é próprio e só ele pode fazer, como defesa nacional e relações exteriores. Sempre tive horror à sanha estatizante e intervencionista no Brasil ▬ a mania obscurantista da proliferação das BRAS e dos pacotes salvacionistas, fórmulas econômicas tupiniquins que bem poderiam ser denominadas de corridas estacionárias, muito esforço e muita marcha, mas sem sair do lugar. Foram sempre aplicadas por governos esquerdistas e infelizmente, amiúde, também têm presença em administrações de cunho nacionalista. Adiante.

 

Truque tosco e repetido, troca de estatais brasileiras por estatais estrangeiras. Postei o primeiro artigo de denúncia da fraude aludida em 10 de dezembro de 2015, intitulado “Desnacionalização suicida”. Nele afirmava em síntese tudo o que disse depois (por isso vou me plagiar agora e bastante): “Nunca fui nacionalista; vejo com simpatia a presença de empresas estrangeiras entre nós. Mas o caso agora é outro. Em 25 de novembro último [2015], o governo colocou à venda concessões por 30 anos para as usinas de Ilha Solteira. Jupiá, Três Marias, Salto Grande, vinte e nove hidrelétricas no total. Ganharam o leilão CEMIG (estatal), COPEL (estatal), CELG (estatal), CELESC (estatal), ENEL (forte presença do governo italiano) e THREE GORGES (estatal chinesa). A estatal chinesa ficou com 80% da energia e pagou R$13,8 bilhões pela outorga. Vejam esta falácia lida por milhares, quem sabe milhões, ilustra como os meios de divulgação vêm tratando o caso: ‘Com os ativos recém-adquiridos, a CTG [China Three Gorges, a estatal chinesa] atinge capacidade instalada de 6.000 W, tornando-se a segunda maior geradora privada do país’. Privada, uma ova; é estatismo do pior, mais danoso que o estatismo brasileiro. A esquerda não solta um pio a respeito desta gritante desnacionalização, que carrega no bojo potencial e gravíssima ingerência externa em assuntos internos. [...] Repito, o episódio das três gargantas que engoliram de uma só vez parte do potencial elétrico do Brasil não é isolado. As estatais chinesas estão ativamente comprando propriedades entre nós nas mais variadas áreas [e obtendo concessões]. Na década de 70 foi usual a palavra finlandização. A Finlândia havia perdido mais de 10% de seu território para a Rússia, quase 20% de seu parque industrial e, pelo temor do vizinho ameaçador e poderoso, acertava sempre o passo com Moscou, não importava o que fizessem os tiranos comunistas. Aquele antigo e civilizado país, formalmente soberano, de fato padecia uma forma larvada de protetorado”.

 

Protetorado, o previsível futuro do retrocesso. Continuava: “Queiramos ou não, a mesma situação, ainda que incipiente, ocorre no Brasil. Com a enorme e cada vez maior presença econômica do Estado chinês entre nós, vai chegar o dia em que o país, em numerosos assuntos internos, vai ter diante de si potência mundial imperialista. E, se colocarmos como padrão como trata os governos esquerdistas e comunistas, facilmente imaginaremos a subserviência diante do poderio chinês. Cortando caminho, vilmente protegido pelo mutismo da covardia e da cumplicidade, está em curso entre nós um processo que vai levar à perda efetiva da soberania nacional. No fundo do horizonte, terrível perspectiva, nos espera o protetorado envergonhado, mesmo que cuidadosamente disfarçado.” Seria uma espécie e finlandização à brasileira.

 

Notícia dinamite. Tudo o que está acima tem potencial explosivo. Mas não é a notícia dinamite que vou indicar agora aos leitores. O ponto explosivo de hoje é outro. Existe no ordenamento jurídico nacional uma legislação especial, qualificada pelo ministro Luiz Fux e ainda por outros juristas de regra suprajurídica ▬ ou seja, paira como critério maior de interpretação sobre o restante da legislação ▬ intitulada LINDB (Lei de Introdução às Normas do Direito Brasileiro).

 

A LINDB desobedecida. Dela respigo aqui dois artigos. Artigo 5º: “Na aplicação da lei, o juiz atenderá aos fins sociais a que ela se dirige e às exigências do bem comum”. Comentando o artigo, o já referido Luiz Fux escreve de forma incontrovertível: “A lei deve ser aplicada em função dos fins sociais a que ela se destina”. De outro modo, a interpretação e aplicação da lei estará em sintonia com a “mens legislatoris”, a intenção do legislador. A mesma LINDB tem o seguinte comando (artigo 11, §2º): “Os Governos estrangeiros, bem como as organizações de qualquer natureza, que eles tenham constituído, dirijam ou hajam investido de funções públicas, não poderão adquirir no Brasil bens imóveis ou susceptíveis de desapropriação”. A intenção do legislador fica clara: o Brasil não tolera governos estrangeiros proprietários de bens imóveis ou bens que possam ser desapropriados. E nem pode comprar imóvel ou bem desapropriável, organização, não importa a natureza dela, dirigida por governo estrangeiro. Cidadão estrangeiro, empresa privada estrangeira, pode. Governo estrangeiro, não. A razão é de evidência solar: o Brasil não tolera ingerência direta ou por meios indiretos de potência estrangeira (governos) em seus assuntos internos. O legislador tornou então inequívoca sua intenção: o governo estrangeiro não pode constituir (nem dirigir) organização de qualquer natureza e por meio dela adquirir bens imóveis ou susceptível de desapropriação. Aqui está o ponto explosivo: Por exemplo, a ENEL é dirigida pelo governo italiano, seus diretores são pelo governo nomeados, aa estatais chinesas são empresas constituídas e dirigidas pelo governo chinês. Estão comprando propriedades no Brasil ou participando de leilões com concessão de 30 anos (renováveis). A concessão não acarreta o domínio, mas quem manda na empresa concessionária por 30 anos (ou mais) é o governo estrangeiro. Há fundos árabes soberanos (propriedade de governos) comprando empresa ou refinarias. Potencial ou realmente, são governos estrangeiros influindo em assuntos internos. Tudo isso fere o §2º do artigo 11 da LINDB, como veremos em detalhes abaixo. É ilegal.

 

Atos nulos em pencas. Tais atos de compra de propriedade ou de participação em leilões de concessões agrediram “os fins sociais” visados pelo legislador. Contrariam o bem comum. S. m. j., foram ilegais; no caso, são nulos da nulidade absoluta; não podem ser convalidados. De outro lado, há um pântano jurídico gigantesco a ser secado. São décadas de ilegalidade, em que houve capitais aplicados, contratos firmados, fazendo nascer, entre muitos outros, problemas de segurança jurídica, equidade, sopesamento de direitos, interesse público.

 

Esbofeteadas a norma e a “mens legislatoris”. A lei é clara na redação e, de outro lado, está clara a “mens legislatoris”. Aristóteles dizia, mais importante que a letra da lei é a intenção do legislador. E o legislador quis, no caso em tela, repito, evitar por inteiro a intervenção de governos estrangeiros no interior da sociedade brasileira. “Os governos estrangeiros, bem como as organizações de qualquer natureza que eles tenham constituído, dirijam”.  Aqui estão incluídas as empresas estatais. E não vale o argumento pífio que precisariam ter “funções públicas”. A conjunção é “ou”, um ou outro caso, valem os dois casos, e não “e”, seria ainda necessário que tivessem funções públicas. Em resumo, não podem adquirir propriedades. Mais ainda, obedecida a “mens legislatoris” não podem também participar em leilões de venda de concessões ▬ condição emergente e imprevista por ocasião da feitura da lei, mas de solução, tudo o indica, clara e fácil. Um governo, por meio de gigantescas empresas concessionarias que controla por décadas, pode atuar nos negócios internos da nação. É o que a lei quis impedir de todos os modos.

 

Horizontes claros, a reivindicação final. Falem os entendidos e não só da área jurídica. Também fale sem timidezes quem tenha responsabilidade relevante em relação ao bem comum. O que, no Direito francês, com pequena adaptação se chama “droit de regard” ▬ direito de olhar, de se preocupar com o assunto. Falem com ciência, experiência, responsabilidade, sem preconceitos, sem subserviência, sem oportunismo. Está óbvia a magnitude do problema. O começo da solução está à vista, é mister aplicar ao caso a determinação do artigo 5º da LINDB, obedecer com inteireza aos “fins sociais” de ordem pública buscados pelo legislador, bem como às exigências do bem comum. E ainda se sujeitar sem subterfúgios ao §2º do artigo 11 da mesma lei. O objeto do artigo foi só um: pôr as primeiras pedras de uma estrada a ser construída por meio de diálogo arejado e amplo, mas norteador, que favoreça o avanço civilizatório do Brasil, fiel às suas raízes, para que se mantenha assegurada a liberdade pessoal e a soberania pública. Privatização idônea, sim; finlandização, não. Continuar a patinhar na ilegalidade, também não. A situação descrita é prenhe das mais graves consequências para o porvir nacional. Que Deus nos ajude!

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