Lamparina na praça de máquinas
Péricles
Capanema
Título
sugestivo escolheu Roberto Campos para suas memórias: a lanterna na popa. A proa
fende as águas da vida, é o presente. Parte de trás, a popa, é o passado. O
texto do memorialista, a lanterna, o iluminava.
O
movimento revolucionário pode ser comparado a um grande navio. Singra os mares
da história humana. Tem parte pouco visitada, a praça de máquinas, onde estão
seus motores, aquilo que o impulsiona. Vou entrar lá com uma lamparina, ali
mostrar certos desvãos.
Tudo estava
nas mãos do comunismo. Em 1917
o comunismo mais radical, sob o comando de Lênin, por meio de golpe de Estado, conquistou
um império gigantesco, a Rússia. Implantou rápida e brutalmente ditadura total,
governou balizado por concepções totalitárias, dominou o Estado, massacrou a oposição;
enfim, o Partido Comunista tinha tudo nas mãos. Caminho desimpedido, seu
objetivo, a sociedade sem Estado dos livres e iguais poderia ser implantado com
celeridade, se necessário a ferro e fogo. E dali, pelo exemplo e pelos aparatos
da expansão imperialista (em especial a Internacional Comunista) logo
conquistaria o mundo encantado com as maravilhas da sociedade comunista ▬ os
amanhãs que cantam. Havia enorme esperança no poder redentor do Estado. A
superpotência comunista, o poder militar, o financiamento do comunismo no
Ocidente de fato ajudaram o proselitismo e a expansão do comunismo. É realidade
conhecida, a cara da moeda.
Obstáculos. Vou pôr em destaque agora o outro lado, a
coroa da moeda. O mundo logo reagiu horrorizado aos espetáculos dantescos do
bolchevismo. O Partido Comunista registrou o baque, não conseguia ganhar
eleições em boa parte por causa da realidade no país dos sovietes. O horror da
situação na Rússia cristalizou fortíssimo sentimento anticomunista e possibilitou
a formação de movimentos dessa orientação no mundo inteiro, muitos dos quais tomaram
o poder. Os próprios socialistas, ainda que concluindo alianças eleitorais,
marcavam distâncias. Pior. O homem novo da utopia comunista não estava se
formando na Rússia soviética. A liberação legal dos costumes ocorrida nos
primeiros anos que deu origem a pavorosa desagregação social, foi trocada pelo
enrijecimento da legislação, sob Stalin, a ponto de certas partes da legislação
civil, por exemplo, as relativas ao divórcio, serem mais restritivas que disposições
semelhantes vigentes em países democráticos. De outro modo, a liberação moral
prometida pela doutrina era limitada pela prática, pois Stalin precisava da
disciplina social para industrializar a Rússia ▬ praticava-se um capitalismo de
Estado. Mais ainda. Lá o comunismo não transformava fundo as mentalidades. O
russo comum era parecido com o russo sob o tsarismo.
Tudo estava
nas mãos do comunismo? O
Estado estava nas suas mãos, as instituições, ensino, polícia, empregos sob
inteiro controle. Contudo, não o interior das pessoas, suas crenças, aspirações,
gostos, costumes. Saltava à vista para os dirigentes, na política e nas esferas
intelectuais, não bastava ter o Estado nas mãos para acelerar a criação do
homem novo comunista. Mais ainda, era pouco ter o Estado nas mãos. E, olhando o
Ocidente, era pavoroso o exemplo de sociedade comunista (tirania e miséria) que
o comunismo russo lhe dava. Dele fugia o povo. Em curto, havia um impasse e a
pura doutrina marxista, determinista, e tudo fazendo derivar de realidades
econômicas, era incapaz de apresentar a solução.
Saídas. De passagem, em artigo anterior, “Dominação
e emancipação”, postado no meu blogue (periclescapanema.blogspot.com) em 26 de
junho, prometi voltar a tratar da Escola de Frankfurt. Cumpro aqui parcialmente
a promessa, espero ainda discorrer mais longamente do tema. Várias foram as
correntes e pensadores comunistas de partido e mesmo anarquistas que procuraram
saídas para o impasse acima referido. Destacaram-se no cipoal das opiniões em choque,
duas delas, o gramscismo e as doutrinas cuja origem de maneira um pouco
simplificada podemos colocar na Escola de Frankfurt. É o que hoje via de regra se
qualifica de forma abrangente de marxismo cultural. Antônio Gramsci (1891-1937)
mostrou a importância de conquistar a sociedade civil (uma grande marcha no
interior das famílias, das igrejas, do ensino, dos meios de divulgação) antes
de busca o poder no Estado, etapa posterior. E Escola de Frankfurt abriu a
mente de milhões de pessoas nas correntes comunistas abrigadas nos PCs ou em
torno dele para a importância da destruição da família tradicional, da generalização
da moral libertária, da criação de novas mentalidades e costumes, da
valorização do instinto com a consequente desvalorização da razão, antes de
visar obsessivamente o poder político. Em resumo, é preciso empapar sobretudo o
interior das personalidades e a sociedade inteira com novos costumes e novas concepções
de caráter libertário e desagregador. O poder político figura apenas como um
dado a mais. Entre seus mais conhecidos representantes são mais conhecidos Herbert
Marcuse (1898-1979), Max Horkheimer (1895-1973), Theodor Adorno (1903-1965),
Walter Benjamin (1892-1940), Erich Fromm (1900-1980).
Um
exemplo. Daniel Cohn-Bendit,
Dany Le Rouge, foi ícone da revolução de maio de 68 na França. A
evolução ao longo de 50 anos do que então ele representava desembocou no que
hoje chamamos de marxismo cultural. Em maio de 1968 concedeu ele entrevista ao Magazine
littéraire da qual transcrevo extratos. “Se quiser, sou marxista, como Bakunin.
Sou muito antileninista, contra o centralismo democrático. Existem três temas
importantes: a luta contra a repressão democrática, contra o autoritarismo e a hierarquia.
Estes três fenômenos se encontram no Leste e no Oeste. Sou contra a sociedade
soviética, sou contra a sociedade capitalista. A classe operária russa não tem
nenhum poder de decisão. Não me interessa dialogar com o mito Mao. O
estalinismo é a forma absoluta de repressão, uma sociedade burocratizada.
Lutamos contra a repressão sexual. Marcuse na sua crítica da sociedade capitalista
e na sua recusa da sociedade dita socialista é para nós um ponto de apoio”.
De forma
muito resumida, é o que o prof. Plinio Corrêa de Oliveira no livro “Revolução e
Contra-Revolução” intitula 4ª Revolução (sucedânea da 1ª Revolução, a Revolução
Protestante, da 2ª Revolução, a Revolução Francesa, e da 3ª Revolução, a
Revolução Comunista). E os temas levantados por tais correntes têm relação
próxima com o que o pensador católico chama de revolução nas tendências, que em
seu ensaio embasa a revolução nas ideias e depois nos fatos ▬ as três profundidades
da Revolução.
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