segunda-feira, 14 de janeiro de 2019

Edificação e escândalo


Edificação e escândalo

Péricles Capanema

Durante longos períodos na Idade Média e, mesmo depois, o Papa agiu repetidas vezes como árbitro em conflitos de nações e povos. Dava a última palavra, acatada por imperadores, reis, outros dirigentes temporais. Não era função ligada intrinsecamente ao múnus petrino, mas, entre outros fatores, a enorme respeitabilidade do Soberano Pontífice o empurrava naturalmente, pela força das coisas, para o centro da vida temporal europeia. Tarefa edificadora, outros tempos. A laicização da esfera civil limitou enormemente seu papel em tais matérias. A Santa Sé, relativamente, poucas vezes agiu como árbitro de forma oficial nos últimos tempos. Mas dessa longa e benéfica presença dos Papas em matérias temporais, ficou o hábito de ouvir o Soberano Pontífice, cuja voz não fere apenas os tímpanos dos católicos, mas de incontáveis pessoas interessadas em conhecer suas tomadas de posição, por sua evidente relação com o destino dos povos.

Contudo, ainda relativamente recente, em nossa época, tivemos eco importante da outrora grande relevância dos Vigários de Cristo na resolução de disputas temporais. Em fins de 1978, a Argentina e o Chile estiveram à beira de conflito armado por causa do Canal de Beagle, no sul do continente; brigavam pela posse das ilhas Picton, Lennox e Nueva. Fracassados os esforços diplomáticos, em 21 de dezembro, tropas argentinas se puseram em marcha para ocupar as ilhas e, se necessário, até partes do Chile continental. O 4º Batalhão de Infantaria da Marinha tinha ordens para nelas desembarcar em 22 de dezembro. As consequências do conflito militar entre Argentina e Chile, imprevisíveis, mas certamente amazônicas, repercutiriam provavelmente por décadas em todas as Américas. Basta alinhar o que hoje é admitido em suas linhas gerais. O alto comando argentino previa aproximadamente 50 mil baixas nas três primeiras semanas. O Equador entraria no lado da Argentina. O Peru e a Bolívia apoiariam a Argentina. Os chilenos pretendiam atacar a usina nuclear de Atucha. Não se sabe que posição tomaria o Brasil. A guerra com certeza deixaria sequelas destruidoras, traria dilacerações dificilmente suturáveis na América do Sul.

Poucas horas antes do choque, talvez minutos, Argentina e Chile aceitaram a mediação de João Paulo II, que enviou à região, como seu representante, o cardeal Antônio Samoré. Tendo como pano de fundo a respeitabilidade pontifícia, os dois países, depois de negociações difíceis, chegaram a um acordo, ilhas para o Chile e controle marítimo da área para os argentinos. Em 29 de novembro de 1984 no Vaticano assinaram declaração conjunta de paz e amizade. Hoje, sem sequelas, são duas potências amigas. Ação papal edificadora ou edificante, se quisermos. Atitudes que constroem.

Viro a página, mas permaneço na América do Sul (e Central) e também em assuntos temporais. Na mensagem de Natal de 2018 (25 de dezembro), o Papa Francisco afirmou “que este tempo de bênção permita à Venezuela encontrar de novo a concórdia e que todos os membros da sociedade trabalhem fraternalmente pelo desenvolvimento do país, ajudando os setores débeis da sociedade”. Sobre a Nicarágua disse: “diante do Menino Jesus os habitantes da Nicarágua se redescubram irmãos para que não prevaleçam divisões e discórdias, mas que todos se esforcem em favorecer a reconciliação e em construir juntos o futuro do país”. Só.

Em 5 de janeiro, vinte ex-presidentes e chefes de governo latino-americanos, entre os quais Oscar Arias, Prêmio Nobel da Paz (1987), ex-presidente da Costa Rica, Eduardo Frei, ex-presidente do Chile, Vicente Fox e Felipe Calderón, ex-presidentes do México, César Gaviria, Andrés Pastrana e Álvaro Uribe, ex-presidentes da Colômbia, Fernando de la Rua, ex-presidente da Argentina, divulgaram severa carta que haviam enviado ao Papa Francisco. De forma serena e respeitosa se confessam escandalizados com a atitude papal por favorecer as ditaduras venezuelana e nicaraguense, assassinas da liberdade e promotoras da miséria popular.

Diz a missiva: “Conhecemos sua preocupação pelo sofrimento que hoje padecem, sem distinções, todos os venezuelanos e, agora, os nicaraguenses. Os primeiros são vítimas da opressão de uma narcoditadura militarizada, que pisa de maneira sistemática os direitos a vida, liberdade, integridade pessoal e, a mais, como consequência de suas políticas públicas deliberadas e de uma deslavada corrupção que escandaliza mundialmente, submete-os a fome generalizada e falta de remédios. Os segundos, em meados do ano, foram vítimas de onda de repressão com quase 300 mortos e 2.500 feridos. De modo que nos preocupa o chamado de Vossa Santidade à concórdia, já que no contexto atual pode entender-se sua fala como um pedido aos povos, que são vítimas, para que entrem em acordo com seus algozes; no particular, o caso venezuelano, com um governo que causou 3.000.000 de refugiados, numa diáspora que a ONU julga chegará a 5,4 milhões de pessoas em 2019”. Lembra a seguir o texto, com base em João XXIII, que os que oprimem não contribuem à unidade.

A censura dos vinte presidentes e chefes de governo é gravíssima: para eles, o Papa Francisco está equiparando vítima e algoz, opressores e oprimidos. Com isso favorece o opressor e o algoz. É acusação de conduta escandalosa, demolidora.

Poucos dias depois da carta, em 8 de janeiro, documento oficial da Conferência Episcopal Venezuelana declarou ilegítimo o novo governo Maduro que se iniciaria no dia 10 de janeiro. Afirma o texto: “É um pecado que clama ao céu querer manter a toda custa o poder e pretender prolongar o fracasso e ineficiência dessas últimas décadas. É moralmente inaceitável. A convocação [da eleição presidencial] foi ilegítima como o é a Assembleia Nacional Constituinte imposta pelo Poder Executivo. Portanto a pretensão de iniciar um novo período presidencial em 10 de janeiro de 2019 é ilegítima”. E reconheceu a Assembleia Nacional como único poder legítimo: “A Assembleia Nacional, eleita com o voto livre e democrático dos venezuelanos, atualmente é o único órgão do poder público com legitimidade”.

No dia 10 de janeiro tomou posse o novo governo, festejado ruidosamente por representantes da China, Rússia, Cuba, Irã, Turquia, Vietnam, Coreia do Norte (Gleisi Hoffmann, presidente do PT, estava lá, o PC do B também mandou representante, havia ainda outros enviados da extrema esquerda brasileira), ▬ ausentes a maior parte dos países da América do Sul, União Europeia, OEA, Estados Unidos. No meio daquela “societas sceleris” (a expressão brota incoercível, já que ali se reuniam para promover um governo opressor), com luz soturna brilhava monsenhor George Koovakod, encarregado de negócios da Santa Sé, enviado especial, a quem Nicolás Maduro agradeceu a presença no início do discurso. Vem natural à mente a denúncia de Paulo VI de 7 de dezembro de 1968 do “misterioso processo de autodemolição” que se havia instalado na Igreja Católica.

Edificação e escândalo. As intervenções papais nos assuntos temporais edificavam, isto é, construíam. Nossa época tem deixado claro que, para escândalo dos fiéis, podem também demolir. Paro por aqui, as palavras faltam; morrem na boca, sufocadas pelo respeito filial. Deus tenha pena de nós.

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