Edificação e
escândalo
Péricles Capanema
Durante longos períodos na Idade Média e, mesmo
depois, o Papa agiu repetidas vezes como árbitro em conflitos de nações e
povos. Dava a última palavra, acatada por imperadores, reis, outros dirigentes
temporais. Não era função ligada intrinsecamente ao múnus petrino, mas, entre
outros fatores, a enorme respeitabilidade do Soberano Pontífice o empurrava
naturalmente, pela força das coisas, para o centro da vida temporal europeia. Tarefa
edificadora, outros tempos. A laicização da esfera civil limitou enormemente seu
papel em tais matérias. A Santa Sé, relativamente, poucas vezes agiu como
árbitro de forma oficial nos últimos tempos. Mas dessa longa e benéfica
presença dos Papas em matérias temporais, ficou o hábito de ouvir o Soberano Pontífice,
cuja voz não fere apenas os tímpanos dos católicos, mas de incontáveis pessoas
interessadas em conhecer suas tomadas de posição, por sua evidente relação com
o destino dos povos.
Contudo, ainda
relativamente recente, em nossa época, tivemos eco importante da outrora grande
relevância dos Vigários de Cristo na resolução de disputas temporais. Em fins
de 1978, a Argentina e o Chile estiveram à beira de conflito armado por causa
do Canal de Beagle, no sul do continente; brigavam pela posse das ilhas Picton,
Lennox e Nueva. Fracassados os esforços diplomáticos, em 21 de dezembro, tropas
argentinas se puseram em marcha para ocupar as ilhas e, se necessário, até partes
do Chile continental. O 4º Batalhão de Infantaria da Marinha tinha ordens para nelas
desembarcar em 22 de dezembro. As consequências do conflito militar entre
Argentina e Chile, imprevisíveis, mas certamente amazônicas, repercutiriam provavelmente
por décadas em todas as Américas. Basta alinhar o que hoje é admitido em suas
linhas gerais. O alto comando argentino previa aproximadamente 50 mil baixas nas
três primeiras semanas. O Equador entraria no lado da Argentina. O Peru e a
Bolívia apoiariam a Argentina. Os chilenos pretendiam atacar a usina nuclear de
Atucha. Não se sabe que posição tomaria o Brasil. A guerra com certeza deixaria
sequelas destruidoras, traria dilacerações dificilmente suturáveis na América
do Sul.
Poucas horas
antes do choque, talvez minutos, Argentina e Chile aceitaram a mediação de João
Paulo II, que enviou à região, como seu representante, o cardeal Antônio
Samoré. Tendo como pano de fundo a respeitabilidade pontifícia, os dois países,
depois de negociações difíceis, chegaram a um acordo, ilhas para o Chile e
controle marítimo da área para os argentinos. Em 29 de novembro de 1984 no
Vaticano assinaram declaração conjunta de paz e amizade. Hoje, sem sequelas,
são duas potências amigas. Ação papal edificadora ou edificante, se quisermos.
Atitudes que constroem.
Viro a página,
mas permaneço na América do Sul (e Central) e também em assuntos temporais. Na
mensagem de Natal de 2018 (25 de dezembro), o Papa Francisco afirmou “que este
tempo de bênção permita à Venezuela encontrar de novo a concórdia e que todos
os membros da sociedade trabalhem fraternalmente pelo desenvolvimento do país,
ajudando os setores débeis da sociedade”. Sobre a Nicarágua disse: “diante do
Menino Jesus os habitantes da Nicarágua se redescubram irmãos para que não
prevaleçam divisões e discórdias, mas que todos se esforcem em favorecer a
reconciliação e em construir juntos o futuro do país”. Só.
Em 5 de
janeiro, vinte ex-presidentes e chefes de governo latino-americanos, entre os
quais Oscar Arias, Prêmio Nobel da Paz (1987), ex-presidente da Costa Rica, Eduardo
Frei, ex-presidente do Chile, Vicente Fox e Felipe Calderón, ex-presidentes do
México, César Gaviria, Andrés Pastrana e Álvaro Uribe, ex-presidentes da Colômbia,
Fernando de la Rua, ex-presidente da Argentina, divulgaram severa carta que
haviam enviado ao Papa Francisco. De forma serena e respeitosa se confessam
escandalizados com a atitude papal por favorecer as ditaduras venezuelana e
nicaraguense, assassinas da liberdade e promotoras da miséria popular.
Diz a missiva:
“Conhecemos sua preocupação pelo sofrimento que hoje padecem, sem distinções, todos
os venezuelanos e, agora, os nicaraguenses. Os primeiros são vítimas da
opressão de uma narcoditadura militarizada, que pisa de maneira sistemática os
direitos a vida, liberdade, integridade pessoal e, a mais, como consequência de
suas políticas públicas deliberadas e de uma deslavada corrupção que
escandaliza mundialmente, submete-os a fome generalizada e falta de remédios. Os
segundos, em meados do ano, foram vítimas de onda de repressão com quase 300
mortos e 2.500 feridos. De modo que nos preocupa o chamado de Vossa Santidade à
concórdia, já que no contexto atual pode entender-se sua fala como um pedido
aos povos, que são vítimas, para que entrem em acordo com seus algozes; no
particular, o caso venezuelano, com um governo que causou 3.000.000 de
refugiados, numa diáspora que a ONU julga chegará a 5,4 milhões de pessoas em
2019”. Lembra a seguir o texto, com base em João
XXIII, que os que oprimem não contribuem à unidade.
A censura dos vinte presidentes e chefes de governo é gravíssima: para
eles, o Papa Francisco está equiparando vítima e algoz, opressores e oprimidos.
Com isso favorece o opressor e o algoz. É acusação de conduta escandalosa,
demolidora.
Poucos dias depois da carta, em 8 de janeiro, documento oficial da
Conferência Episcopal Venezuelana declarou ilegítimo o novo governo Maduro que
se iniciaria no dia 10 de janeiro. Afirma o texto: “É um pecado que clama ao
céu querer manter a toda custa o poder e pretender prolongar o fracasso e
ineficiência dessas últimas décadas. É moralmente inaceitável. A convocação [da
eleição presidencial] foi ilegítima como o é a Assembleia Nacional Constituinte
imposta pelo Poder Executivo. Portanto a pretensão de iniciar um novo período
presidencial em 10 de janeiro de 2019 é ilegítima”. E reconheceu a Assembleia
Nacional como único poder legítimo: “A Assembleia Nacional, eleita com o voto
livre e democrático dos venezuelanos, atualmente é o único órgão do poder
público com legitimidade”.
No dia 10 de janeiro tomou posse o novo governo, festejado ruidosamente por
representantes da China, Rússia, Cuba, Irã, Turquia, Vietnam, Coreia do Norte (Gleisi
Hoffmann, presidente do PT, estava lá, o PC do B também mandou representante,
havia ainda outros enviados da extrema esquerda brasileira), ▬ ausentes a maior
parte dos países da América do Sul, União Europeia, OEA, Estados Unidos. No
meio daquela “societas sceleris” (a expressão brota incoercível, já que ali se
reuniam para promover um governo opressor), com luz soturna brilhava monsenhor
George Koovakod, encarregado de negócios da Santa Sé, enviado especial, a quem
Nicolás Maduro agradeceu a presença no início do discurso. Vem natural à mente a
denúncia de Paulo VI de 7 de dezembro de 1968 do “misterioso processo de
autodemolição” que se havia instalado na Igreja Católica.
Edificação e escândalo. As intervenções papais nos assuntos temporais edificavam,
isto é, construíam. Nossa época tem deixado claro que, para escândalo dos fiéis,
podem também demolir. Paro por aqui, as palavras faltam; morrem na boca, sufocadas
pelo respeito filial. Deus tenha pena de nós.
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