segunda-feira, 1 de julho de 2024

Escolhas mortais para o Brasil

 

Escolhas mortais para o Brasil

 

Péricles Capanema

 

Opções letais. Vou tratar de um tipo de escolhas aliciantes, quase irresistíveis, aparentemente vivificantes e restauradoras, mas que trazem, logo na esquina, consequências sinistras. São como tentações, assolam toda a existência, de alto a baixo, dos assuntos mais corriqueiros até os mais decisivos. Dois exemplos. O obeso que sempre escolhe comer mais um doce e logo na frente se depara com a condição de obeso mórbido; doente grave, sequelas sérias, tratamento difícil. O país que sempre gasta além do orçamento (nosso caso, torramos dinheiro público muito além do possível) e logo depois, a economia fica enferma, caem sobre nós inflação, recessão, queda de produção, desemprego, com sofrimentos muito maiores dos pobres. Paro por aqui, os exemplos seriam infinitos. Abaixo vou me ater a realidade conexa, mas distante dos exemplos acima, sobretudo terão laços com a independência e soberania nacionais, com reflexos imediatos na preservação das liberdades naturais do brasileiro comum ▬ entre outras, opinar, estudar, escolher profissão e local de residência, casar, ter propriedade, empreender, praticar a religião.

 

Comandante em Pequim. Começo. O general Tomás Paiva, comandante do Exército, visitará oficialmente a China comunista entre 4 e 14 de julho próximos. Entre outros compromissos, reunir-se-á com o chefe do Exército chinês. O Brasil tem particular interesse de intercâmbio e compras na área cibernética, munição pesada e blindados. A justificação maior [motivo oficial, bem entendido; nas comunicações oficiais, sabe-se, muitas vezes o expresso vela a realidade] para a visita é o interesse brasileiro de manter relações próximas com os países do BRIC, em especial, óbvio, com Rússia, China e Índia. Com relação à Rússia, por agora em guerra, não convém visitas. O referido general já visitou a Índia. Na aparência, visita corriqueira. Não é.

 

Avibras na balança. Melhorando, Avibras balança. Temos aqui uma escolha mortal. A visita se dá quando está na agenda das relações entre Brasil, China e Estados Unidos, de forma relevante, item bem delicado ▬ gravíssimo. A ele. O Brasil tem uma grande fabricante de material militar, capital privado, a Avibras Aeroespacial. Recordando, a Avibras, fornecedora das Forças, mais de 50 anos em atividade, sede em São José dos Campos, tem importância especial pela produção do Sistema ASTROS, capaz de lançar mísseis de cruzeiro e foguetes guiados. A mais, ela fabrica ainda motores foguetes para a Marinha e Força Aérea. A seguir, mais dados fundamentais. No site da empresa, informam-se em linguagem técnica diferentes produtos que denotam a importância de sua atividade para a defesa do Brasil. Entre os anunciados, “sistemas fixos ou móveis de C4ISTAR (Comando, Controle, Comunicação, Computação, Inteligência, Vigilância, Aquisição de Alvo e Reconhecimento) e Aeronave Remotamente Pilotada (ARP) - o Falcão”. No mesmo texto informativo, a empresa mostra sua posição ímpar para a segurança nacional: “com a certificação do Ministério da Defesa como “Empresa Estratégica de Defesa - EED”, a Avibras tornou-se ainda mais competitiva nos mercados interno e externo.” Em resumo, as Forças a consideram de importância estratégica para a defesa e soberania nacionais.

 

Impasse trágico e saída tentadora. Pesa sobre a Avibras, padecendo hoje recuperação judicial, a espada da falência próxima. Segundo a revista Sociedade Militar, sua dívida é de R$600 milhões. E não tem como pagá-la. Falida, sumirá do mapa. Seus produtos deixariam de ser oferecidos às Forças, surgindo novos fornecedores, nacionais ou estrangeiros. Quais? Incógnita, de momento. Para evitar o desenlace trágico, a empresa tentou várias parcerias, mas fracassou em todos os tentames. Depois das referidas tentativas, de Pequim lhe foi lançada uma corda aliciante: a NORINCO, estatal chinesa, compraria 49% do seu capital social, consertaria as contas, arranjaria clientes e faria a Avibras prosperar de novo. Carta da NORINCO já foi enviada ao governo brasileiro, propondo o negócio. Arapuca, se quisermos. A corda lançada de Pequim evitaria o naufrágio. A empresa, mais ainda, o governo e as Forças, que atitude devem tomar? Segurar a corda? Dar-lhe as costas? Afloram, compreensivelmente, os choques de opiniões dentro do aparato militar e do governo. A Folha informou, existem generais brasileiros na ativa simpáticos à ideia, o que permite levantar a hipótese de trabalhos de convencimento a favor da NORINCO. Os Estados Unidos ameaçam reagir ao possível fato novo (estatal chinesa detendo importantes segredos militares brasileiros) com embargos devastadores de tecnologia de ponta, pois a Avibras detém conhecimentos sensíveis, oriundos de lá, cuja captura pelo governo de Pequim poderia ameaçar interesses norte-americanos vitais. Este tema, candente em Washington e Brasília, plausivelmente será ventilado e encaminhado nas conversas do general Tomás Paiva em Pequim. Para que rumo o general, obedecendo diretrizes do governo petista, orientará as conversas? Há apreensões. Fundadas. A saída simples [e devastadora] está clara: a estatal chinesa assume o leme, salva a empresa, mantém os empregos [a empresa demitiu 420 colaboradores de uma só vez], segura a produção, deixando ainda o sócio brasileiro com o controle formal: 51% das ações. Aparentemente persistiria o controle nacional sobre a produção de armamento e sistemas de altíssima importância. Me engana que eu gosto. Sem disfarces, seria um passo a mais na aproximação do Brasil com a China. Aproximação? É a palavra certa? O termo à vera rescende a eufemismo. Na prática, o que acontecerá é inserção ainda maior do Brasil na zona de influência chinesa, com restrição ainda maior a sua liberdade de movimentos. Em tal relação, é impossível não perceber traços evidentes da antiga relação, tão increpada e com fortes razões, das potências colonizadoras europeias com seus povos colonizados.

 

Política permanente. Lembrei acima, o Brasil (e agora incluo os países da América Latina em geral), cada vez mais, têm em relação à China a mesma relação que os povos colonizados tinham com as potências colonizadoras europeias do século XIX e XX. As colônias enviavam a matéria-prima, preço camarada, as indústrias nas metrópoles processavam-na agregando valor, e devolviam-na como manufaturados caros. Farei aparente desvio; de fato, continuarei no tema. Exemplo doloroso atual é o caso do aço, nervo da industrialização. No início do século XXI, a América Latina fabricava 6,6% do aço mundial. Em 2023, fabricou 3,1%. A associação Latino-Americana do Aço (Alacero) acusou a China de invadir a região com aço barato, provocando a retração da indústria. Afirma Alejandro Wagner, diretor-geral da Alacero: “Entre 2000 e 2023, a China aumentou sua produção de aço em 700%. Passou da produção de 15% do aço mundial para 54%”. As exportações de aço da América Latina para a China caíram 94% de 2000 a 2023. As exportações de aço da China para a América Latina, no mesmo período, subiram 8.690%. Ao mesmo tempo, a exportação de matéria-prima para a China (ferro, soja, petróleo, carne etc) aumentou em 1.500%. No período analisado a produção chinesa saltou de 128,5 milhões de toneladas de aço anuais para 1 bilhão de toneladas. Deste total, 90 milhões foram exportadas; 10 milhões para a América Latina. O Brasil compra hoje da China 17% do aço que consome.

 

Reprimarização. Alejandro Wagner fala de processo em curso, a “reprimarização” (desindustrialização acelerada, em especial no setor do aço, retorno à venda para o Exterior de matérias-primas e compra de material manufaturado), provocado em boa parte pela invasão de produtos chineses. Trará empobrecimento, salários menores em média (já está causando), menos ofertas de empregos, perenização de padrões próprios ao chamado Terceiro Mundo. Com efeito, é fenômeno notório, a indústria vai se encolhendo, a exportação de matérias-primas para a China aumenta e avança. Como nos tempos coloniais, indústria manufaturadora nas metrópoles, produção de matéria-prima para exportação nas colônias. Em linhas gerais, a indústria de transformação chegou a representar em 1985, 35,9% do PIB. Hoje está por volta de 12%.

 

Uma proposta não factível. Tarifas inibidoras sobre o aço chinês? Taxar alto na entrada. Seria uma saída, ainda que parcial. Posta a situação presente, Alejandro Wagner exprime opinião generalizada, acha difícil tarifas decisivas no caso brasileiro; o Brasil no seu comércio exterior já está muito dependente em sua economia das exportações para a China, e assim, temendo represálias, não teria força suficiente para proteger com inteira eficácia a produção nacional, que, no caso, enfrenta subsídios do governo chinês e queima de estoques muito altos. Em linguagem diplomática, Alejandro Wagner afirma que o nível de comércio entre o Brasil e a Cina “limita sua capacidade de impor tarifas”. São escolhas aliciantes feitas há muito tempo (entre outras, promessas de aumento rápido das exportações e da entrada de dólares), mantidas agora em parte pelo temor de represálias (no caso do governo petista, também por afinidade ideológica, amizade com a China, rejeição aos Estados Unidos). Escolhas funestas.

 

O Sul global numa América Latina chicoteada pela reprimarização. A “reprimarização” da América Latina (e do Brasil em particular) descrita, ressaltada e prevista por Alejandro Wagner, realidade já antiga, que se impõe gradualmente, acontece na ocasião em que, estimulado pela China e na prática comandado por ela, forma-se um conjunto meio confuso e um tanto informal de nações (melhor, Estados) intitulado o Sul Global, realidade nova construída com muita propaganda e cuidados. O Sul Global tem clara nota antiamericana, visa diminuir e cercear os Estados Unidos (ampliando, o Ocidente). É um cerco, afinal. Lula no Brasil é entusiasta do Sul Global. Se feitas, serão também escolhas mortais, aliciantes pelas promessas de maior comércio internacional, presença mais efetiva no mundo, troca de conhecimentos e vai por aí afora. Na realidade, teremos, com o tempo, um bloco de nações antiamericanas avassaladas por Pequim. Se quisermos, trabalhando contra os interesses do Ocidente. Nelas, as liberdades naturais, como nos modelos festejados (China, Coreia do Norte, Cuba, Venezuela, entre outros) serão paulatinamente asfixiadas. Em linha com tal quadro, Gleisi Hoffmann, presidente nacional do PT, satisfeita, declarou em Pequim: “Os EUA atravessam uma imensa crise, e em decorrência disto, mas também em decorrência do crescimento do resto do mundo vivemos um momento marcado pelo declínio da hegemonia, da influência dos Estados Unidos”. Continuou: “Como diria o comunista Antônio Gramsci, o velho mundo não funciona mais de forma adequada, mas apesar disso o velho mundo continua forte. O novo mundo precisa surgir e já está surgindo. Mas esse novo mundo ainda não conseguiu se firmar”.

 

Um mal-entendido que precisa acabar. Escrevi acima, o Sul Global está sendo pensado e construído contra o Ocidente. Pura verdade. Mas a mera menção “contra o Ocidente”, sem explicação aclaradora, por causa de mal-entendido de décadas, talvez de séculos, prejudica gravemente em particular nos Estados Unidos os interesses da América Latina. Para a generalidade da opinião pública dos Estados Unidos, a América Latina não pertence ao Ocidente. Portugal pertence. Espanha pertence. Nós, América Latina, somos Terceiro Mundo. É lá generalizada a opinião de que o dever maior do país é manter o Ocidente em sua área de influência: Europa, Canadá, Austrália, Nova Zelândia. Ainda, por razões diversas, “cum grano salis”, nessa lista se poderiam incluir Filipinas, Japão, Coreia do Sul, Taiwan. África e América Latina são Terceiro Mundo, com o qual parte importante da opinião pública norte-americana, de maneira muito genérica, sente obrigação menor de evitar o avanço chinês. Referidos países não se encaixariam no conceito de “West” e de “western values”. E assim, é propensão ativa, posta a obrigação maior de preservar o Ocidente, não seria tão catastrófico, como no caso de país europeu, caso países do Terceiro Mundo se tornassem Estados vassalos de Pequim. A verdade histórica é outra e precisa ser realçada, cultivada e fortalecida: os países latino-americanos pertencem inteiramente à área ocidental de civilização, por seu passado e valores transmitidos e cultivados, ainda que, geralmente, tenham desenvolvimento econômico menor. Falta aqui esforço de esclarecimento gigantesco tanto nos Estados Unidos como em cada país da América Latina para extinguir o mal-entendido. Transcende, é óbvio, em muito o escopo do presente artigo tratar do assunto.

 

Luvas de pelica. Chegou a hora da conclusão. É evidente, constitui tema delicadíssimo as relações comerciais entre Brasil e China, prenhe de enormes repercussões na economia brasileira, em especial no agro. A questão deve ser tratada com com luvas de pelica, sem agredir interesses legítimos, tantas vezes essenciais. Contudo, é imprescindível, para levá-la adiante com vantagens contínuas e perenes para o Brasil (e para a América Latina), ter clareza solar a respeito do quadro inteiro, para a qual espera terem contribuído as considerações acima, ainda que pobremente. Andar no escuro, tombo certo.

 

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