terça-feira, 29 de agosto de 2017

O urutu hipnotizou o sabiá

O urutu hipnotizou o sabiá

Péricles Capanema

O sabiá-laranjeira, que já era ave-símbolo do Estado de São Paulo, foi declarado ave-símbolo do Brasil por decreto de 3 de outubro de 2002. Oficialmente se juntou aos quatro símbolos nacionais: bandeira, hino, brasão de armas, selo. Apropriadas as escolhas, brasileiríssimo o sabiá. Representa-nos, como a andorinha à Áustria e a cegonha à Alemanha. Passo para a cobra. O urutu, sertão afora, intimida mais que a cascavel. Alerta o matuto, o urutu, quando num mata, aleja. Os herpetólogos negam que serpente hipnotize passarinho. A ave, descuidada, aproxima-se por si do réptil imóvel, pronto para o bote. Aceito a ciência, mas vou ficar aqui com o capiau: o urutu hipnotiza o sabiá. Serve aos objetivos do artigo.

O governo acaba de lançar o mais amplo pacote de privatizações e concessões desde o governo FHC. Já aviso de saída, eu acho é pouco, sou favorável à mais abrangente privatização e à utilização crescente das concessões. Em princípio, quanto maior a presença de capital privado na economia, melhor. Entre privatizações e concessões, foram anunciados 806 quilômetros na Manaus-Porto Velho, 634 quilômetros na BR-153, 15 terminais portuários em Belém, Vila do Conde, Paranaguá e Vitória. Doze aeroportos serão entregues à iniciativa privada, entre os quais Congonhas, o mais movimentado do País. O governo pretende vender sua participação nos aeroportos de Guarulhos, Confins, Brasília e Galeão. Ainda 11 lotes de linhas de transmissão de energia, além de subestações, com obrigação de as empresas vencedoras ampliarem a distribuição, localizados na Bahia, Ceará, Pará, Paraná, Paraíba, Pernambuco, Piauí, Rio Grande do Norte, Minas Gerais e Tocantins.

De todas, a mais chamativa privatização é a da Eletrobrás. Haverá emissão de papeis sem subscrição da União que, com isso, perderá o controle. A estatal opera 12 hidrelétricas e duas termelétricas. Tem 61 mil quilômetros de linhas de transmissão. Paro por aqui.

Poderá ser o fim de um pesadelo. Como é notório, suas diretorias são leiloadas por políticos. Registrou prejuízos entre 2012 e 2015, deve R$40 bilhões. Segundo cálculos da 3G Radar, gestora de recursos financeiros, a União (você, contribuinte) ali perdeu cerca de R$186 bilhões nos últimos 15 anos com o rateio político e a má gestão. E a imprensa, volta e meia informa, depois do petrolão, virá o eletrolão. Sua venda poderia gerar R$20 bilhões para os cofres públicos.

Aqui se esgueira o urutu. Em 24 de agosto a Odebrecht Latinvest anunciou a venda da hidrelétrica de Chaglla, a terceira maior do Peru, para um consórcio liderado pela China Three Gorges Corporation (CTG), estatal chinesa, por aproximadamente 1,4 bilhão de dólares. Às vezes faz falta lembrar o óbvio, a CTG é inteiramente dirigida pelo governo e pelo Partido Comunista Chinês (PCC).

Um dia depois, 25 de agosto, o Estadão noticiou, na China o presidente Michel Temer vai oferecer o pacote de privatizações e concessões a empresários chineses. Entre os ativos, as quatro usinas da CEMIG: Miranda, São Simão, Volta Grande e Jaguara. O pacote ofertado aos chineses destacará projetos de energia, aqui a Eletrobrás, terminais portuários, transportes, rodovias, hidrovias, ferrovias. Segundo Tarcísio Freitas, secretário de coordenação de projetos da PPI (Programa de Parcerias de Investimentos), membro da comitiva presidencial, para 1º de setembro está agendada reunião do Presidente com o SPIC (State Power Investment Overseas) para propor os negócios. O SPIC, grupo empresarial chinês, 140 mil funcionários, ativos de 126 bilhões de dólares, é estatal. De outro modo, repito, dirigida pelo governo e pelo Partido Comunista Chinês. Constitui exemplo revelador de pelo menos um tipo de “empresários chineses” (membros do PCC) para os quais será apresentado o pacote de negócios.

A privatização tupiniquim tem apresentado isso de extraordinário: entrega maciça de estatais brasileiras para estatais chinesas. Com um agravante: quem mandava nelas eram os partidos da base aliada. Foram foco de roubalheira debandada e incompetência demolidora. Quem vai mandar em parte de tais empresas a partir de agora, ou daqui a pouco, será o Partido Comunista Chinês. E passarão a ser instrumentos (descarado, oculto, disfarçado, irá da hora) da política do Partido Comunista Chinês. João Carlos Mello, presidente da Thymos, consultoria do setor elétrico, observou: “Os chineses não gostam de nada pulverizado”. Exemplificou, no segundo semestre de 2016, a State Grid, estatal chinesa, comprou da Camargo Corrêa, os 23% que esta empresa detinha na CPFL (Companhia Paulista de Força e Luz). Nos meses seguintes, os chineses foram adquirindo participações minoritárias. A partir de janeiro de 2017, a State Grid se tornou controladora da CPFL (54,6%). De passagem, a CPFL atende 679 municípios e tem 9,1 milhões de clientes nos estados de São Paulo, Rio Grande do Sul, Paraná e Minas Gerais.

Não custa lembrar, de momento, a China e a Rússia, voltando as costas para a fome, prisões e assassinatos do povo, estão apoiando a tirania chavista na Venezuela. Aqui no Brasil, o PT também apoia o ditador Maduro. Sintonias.

A que política servirão as estatais chinesas no Brasil? Em quadro mais amplo, na África e América Latina, a China está fincando estacas de seu poder que, oportunamente, será usado contra a influência dos Estados Unidos. Que papel terá o Brasil na implantação desses objetivos do PCC? Já aviso, se o setor elétrico brasileiro e outras áreas forem entregues ao PCC, o PT vai deixar de falar contra a privatização. O partido tem favorecido interesses de seus aliados, os comunistas chineses.

Por que ninguém comenta o óbvio ululante? Parte da resposta também é óbvia. A China é o maior parceiro comercial do Brasil. Grosso modo, tem conosco as relações econômicas clássicas de metrópole e colônia. Recebe matéria-prima, vende produtos industrializados. Se agirmos contra seus interesses, poderá rapidamente comprar nossos produtos de outros fornecedores. E aí teremos queda de exportações, diminuição do PIB, quebra de empresas, demissões. Ninguém gosta de confessar, mas o silêncio é sintoma de protetorado seminal, construído por anos e anos de distanciamento consciente dos mercados norte-americano e europeu. Ia utilizar distanciamento criminoso, ainda acho que talvez fosse mais apropriado. As instituições nacionais, órgãos do Estado, por patriotismo, até mesmo por dever constitucional têm o olhar posto nos perigos à soberania e à independência do Brasil. Decepcionariam fundo os melhores brasileiros se soubessem não estarem alertas a respeito que deles têm o direito de esperar, pelos canais adequados, palavras orientadoras.


De norte a sul são alardeadas enormes possibilidades de negócios com a China, ao tempo do silêncio sobre os perigos. Motivo? O parágrafo acima não traz tudo. Têm ainda seu peso a insciência, a superficialidade de espírito, o otimismo doentio. Faltaria algo? Meu medo, o urutu hipnotizou o sabiá.

sábado, 26 de agosto de 2017

A coragem das definições

A coragem das definições

Péricles Capanema

Com enorme proveito acabei de ler Return to order de John Horvat II, livro enriquecedor para quem pretenda sem clichês conhecer os Estados Unidos e vislumbrar as encruzilhadas. Convém lembrar, seu rumo nas bifurcações repercutirá rapidamente na vida nossa.

Encantaram-me a nitidez das percepções e a coragem das definições, coisa hoje rara. Reverenciamos a bravura do soldado, a valentia do pai de família e tantas outras. Existe também a fortaleza do intelectual, dela se trata aqui — o amor à objetividade o obriga por vezes a gravar no papel, conscientemente, palavras que destruirão o êxito profissional e até a nomeada social. Acontece então, a escravidão à verdade o atira sem volta no ostracismo. O pior dos erros é acertar sozinho contra muita gente, constatava amargo e risonho Agripino Grieco.

Volto ao livro. Em visão de conjunto, com base segura em pensadores como Aristóteles e santo Tomás de Aquino, assim como em papas como Leão XIII e Pio XII, Horvart interliga moral, economia, cultura, civilização. Desbravador arrojado, chegou ao topo do morro, de lá descreveu panoramas novos. Traz explicitações com força difusora, chegará o dia em que tais idéias, de momento ainda largamente desconhecidas, granjearão amplo assentimento.

Por isso, Horvat correu riscos — o primeiro, a incompreensão; o segundo, o isolamento. Contudo, quis assim, tornou-se credor de justa admiração. Com efeito, não existe ali apenas agudeza de análise, assoma nítido o desassombro, em especial quando demole barreiras fincadas pelas batidas tiranias das modas do pensamento.

Entre sem-número deles, respigo dois exemplos de importância decisiva para os Estados Unidos, a pátria da liberdade e, decorrência, das mais amplas possibilidades de escolha. Largada: a que conceito de liberdade aderir? Abraçar qual noção de escolha? Daqui nascem diferentes, por vezes contrários, estilos de vida, hábitos, culturas, até civilizações. O autor pôs pingos em vários iis: “Muitos confundem liberdade com escolha. Não se dão conta que liberdade é a faculdade de escolher os meios para determinado fim, percebido como bom e em acordo com nossa natureza. Não é a própria escolha. Quando alguém faz uma má escolha ou escolhe um fim ruim, o resultado não é liberdade, mas uma forma de escravidão às paixões. Dessa forma a pessoa que come demais, quando satisfaz a fome natural, ou quando escolhe um vinho excelente, procurando se embebedar, não exercita a verdadeira liberdade, mas abusa dela. Quanto mais dominamos nossa natureza, mais livres somos. A virtude sobrenatural nos confere maior liberdade, pois não apenas dominamos nossa natureza, mas a ultrapassamos”.

A seguir lembra texto de santo Tomás de Aquino a respeito, comentado por Leão XIII na encíclica Libertas Praestantissimum. Ensino do Papa: “Da sua doutrina [de santo Tomás de Aquino] resulta que a faculdade de pecar não é uma liberdade, mas uma escravidão”. O Papa recorre ao Doutor Angélico: “Todo ser é o que lhe convém segundo a natureza. Logo, quando se move por um agente exterior, não age por si mesmo, mas pelo impulso de outrem, o que é próprio de escravo. Ora, segundo a natureza, o homem é racional. Por isso quando se move segundo a razão, é por movimento próprio que ele se move, e opera por si mesmo, o que é essência da liberdade; mas, quando peca, procede contra a razão, e então é como se fosse posto em movimento por outro e sujeito a dominação estranha”.

O segundo exemplo tem importância semelhante, se não maior. John Horvat não busca na economia nem na sociologia as razões dos problemas maiores que atormentam o País. Esburaca mais fundo, coloca a intemperança como grande fator da crise nos Estados Unidos, não importa o âmbito. Vai além, qualifica-a: intemperança frenética, a intemperança em estado de frenesi.

Uma das definições da intemperança frenética: “É um impulso inquieto, explosivo e implacável no interior do homem que se manifesta na economia moderna 1) pela destruição de limites legítimos; 2) pela satisfação de paixões ilegítimas. Anima impulso econômico subjacente cujo efeito pode ser comparado ao de um acelerador ou regulador estragado que desnatura uma máquina de bom funcionamento, desequilibrando-a”. E põe a nu muitos de seus efeitos na economia. Faz o mesmo em outros âmbitos, academia, cultura, política, o que confere grande unidade ao trabalho. Presencia o leitor uma abordagem inovadora em quase 400 páginas de brilhante análise iluminada ao mesmo tempo pela religião, psicologia, moral, história, a perder de vista mais esclarecedora que os exames compartimentados habituais.

John Horvat enraíza a intemperança frenética na explosão do orgulho e sensualidade, que deu origem às revoluções nos Tempos Modernos, como está na obra Revolução e Contra-Revolução de Plinio Corrêa de Oliveira. Pondera o autor: “Para entender esse impulso subjacente, devemos ter em mente sua natureza frenética. Não estamos falando da mera intemperança que leva para a simples ganância ou ambição. Sempre prejudicaram o homem. Também não confundimos intemperança frenética com a legítima e enérgica atividade de negócios e sua aceitação do risco que gera prosperidade. Intemperança frenética é uma expansão explosiva dos desejos humanos além dos limites tradicionais e morais”. No trabalho, tal conceito é aplicado aos mais variados âmbitos da vida humana, o que lhe traz grande unidade.


Por imposição lógica, a solução para a crise atual reside, em raiz, na prática da temperança, vista em conjunção com as outras virtudes cardeais, prudência, justiça, fortaleza. Fazia falta lembrar tais verdades, em especial quando trabalhadas por autor que sabe ver e refletir.

domingo, 20 de agosto de 2017

Imposição totalitária

Imposição totalitária

Péricles Capanema

A Pontifícia Universidade Católica de São Paulo instalou sanitários unissex em seu campus da rua Monte Alegre e logo procurou justificar-se: “A PUC-SP, atenta à diversidade de sua comunidade universitária, composta por alunos, professores e funcionários, buscou contemplar a todos com a implantação do banheiro unissex. A Instituição ressalta que estes sanitários são de uso comum, não direcionados a públicos específicos”. A diversidade, formada por alunos, professores e funcionários, nunca levaria aos banheiros unissex. Diversidade aqui evoca outras realidades que a PUC, pisando em ovos, preferiu não nomear explicitamente.

Trato a seguir de tema por muitos pressentido, mas por ninguém ainda levantado, pelo que me consta. É medida precursora. Com o tempo, outras instituições católicas promoverão iniciativas semelhantes que consolidarão a mesma direção demolidora. E a própria PUC-SP, assimilado o choque do passo pioneiro, provavelmente também radicalizará na direção agora anunciada, passando por cima de mal-estares e oposições, em especial de professoras e alunas. Assistimos a ensaios de implantação de um programa de evidente caráter discriminador e excludente de setores conservadores que estraçalha o mais interior da personalidade, porá em tela de juízo até o direito de o homem ser homem e de a mulher ser mulher.

De outro modo, se reações enérgicas não surgirem vitoriosas, teremos em instituições católicas, hoje já amplamente infeccionadas por doutrinas negadoras até da existência da natureza humana, medidas favorecedoras do homossexualismo, transsexualismo e ideologia de gênero. Agride-nos programa revolucionário radical (vai até as raízes da pessoa humana), a ser levado a cabo, é o que de momento parece, sobretudo de forma girondina.

A decisão chocante traumatizou, prima facie, por vir de instituição católica. Há evidente desnaturamento — poderia utilizar traição no lugar de desnaturamento — dos intuitos que deram origem à PUC – SP, ideais, na origem, santos. As PUCs tiveram no Brasil como grandes inspiradores dom Sebastião Leme e o padre Leonel Franca. Seu objetivo, recristianizar, se quisermos, recatolicizar em especial as elites brasileiras, até então presas do indiferentismo, do agnosticismo e do anti-clericalismo. O Brasil das décadas 10, 20 e 30 era constituído por uma ampla maioria católica, apática e sufocada, dirigida por minorias descrentes. A PUC em São Paulo foi ainda vista como contraponto à fundação da USP, de clara inspiração racionalista.

Mais remotamente, a implantação das PUCs refletia ideal de restauração, reconquistar para a Igreja as camadas intelectuais e, com elas, caminhar rumo à ordem temporal cristã. Tais anseios no Brasil ecoavam movimentos europeus, cujo coração palpitava na Santa Sé. Sob o ponto de vista da história pátria, convém ainda ter em vista, vivíamos a época dos grandes projetos de reconstrução nacional; o católico era um deles.

Lembro pontos da ideologia de gênero, que está na base da referida investida revolucionária, da qual a PUC-SP se transforma, no mínimo, em companheira de viagem. Digo no mínimo, pois muitas dessas doutrinas ganham ali de forma crescente adeptos entre professores e alunos. De companheiros de viagem passam a promotores. Foi assim e continua sendo na esquerda católica de matiz político e social, repete-se a realidade macabra nas correntes revolucionárias que buscam mudar o interior do próprio homem, negando-lhe natureza, inclinações, funções complementares aos dois sexos.

Segundo afirma a referida ideologia, o gênero é construção meramente social e cultural, não tem base natural, de outro jeito, independe do sexo biológico. Nasceu fêmea, pode escolher o gênero masculino. Nasceu macho, pode escolher o feminino. Ao longo da vida, modifica escolhas, se quiser, pois gênero e sexualidade são mutáveis. Shulamith Firestone, das mais conhecidas promotoras do movimento, afirma: “O gênero é uma construção cultural. Homem e masculino poderiam significar tanto um corpo feminino como um masculino; mulher e feminino tanto um corpo masculino como um feminino. A meta definitiva da revolução feminista é acabar com a própria diferença de sexos”. Chamei a atenção para um movimento em marcha, que já agora coloca em sua farândola depravada instituições católicas. O curso da lógica reclama a constatação inevitável, suas imposições totalitárias lembram a eugenia nazista e a criação do homem novo da mitologia comunista.


Para finalizar, o magistério de Bento XVI a respeito, discurso de 21 de dezembro de 2012 à Cúria Romana, servirá de bálsamo: “Na questão da família, não está em jogo meramente uma determinada forma social, mas o próprio homem: está em questão o que é o homem e o que é preciso fazer para ser justamente homem. [...] Se antes tínhamos visto como causa da crise da família um mal-entendido acerca da essência da liberdade humana, agora se torna claro [...] está em jogo a visão do próprio ser, do que significa realmente ser homem. [...] Hoje, sob o vocábulo ‘gender – gênero’, é apresentado como nova filosofia da sexualidade. De acordo com tal filosofia, o sexo já não é um dado originário da natureza que o homem deve aceitar e preencher pessoalmente de significado, mas uma função social que cada qual decide autonomamente [...] Salta aos olhos a profunda falsidade desta teoria e da revolução antropológica que lhe está subjacente. O homem contesta o fato de possuir uma natureza pré-constituída pela sua corporeidade [...]. Nega a sua própria natureza, decidindo que esta não lhe é dada como um fato pré-constituído, mas é ele próprio quem a cria. De acordo com a narração bíblica da criação, pertence à essência da criatura humana ter sido criada por Deus como homem ou como mulher. Esta dualidade é essencial para o ser humano, como Deus o fez. É precisamente esta dualidade como ponto de partida que é contestada. Deixou de ser válido aquilo que se lê na narração da criação: ‘Ele os criou homem e mulher’ (Gn 1, 27). Isto deixou de ser válido, para valer que não foi Ele que os criou homem e mulher; mas teria sido a sociedade a determiná-lo até agora, ao passo que agora somos nós mesmos a decidir sobre isto. Homem e mulher como realidade da criação, como natureza da pessoa humana, já não existem. O homem contesta a sua própria natureza; agora, é só espírito e vontade. A manipulação da natureza, que hoje deploramos relativamente ao meio ambiente, torna-se aqui a escolha básica do homem a respeito de si mesmo. Agora existe apenas o homem em abstrato, que em seguida escolhe para si, autonomamente, qualquer coisa como sua natureza. Homem e mulher são contestados como exigência, ditada pela criação, de haver formas da pessoa humana que se completam mutuamente. Se, porém, não há a dualidade de homem e mulher como um dado da criação, então deixa de existir também a família como realidade pré-estabelecida pela criação. Mas, em tal caso, também a prole perdeu o lugar que até agora lhe competia, e a dignidade particular que lhe é própria. [...] Chega-se necessariamente a negar o próprio Criador”. E nós chegamos necessariamente à conclusão que, inexistindo reações enérgicas, instituições católicas se preparam para esbofetear o ensinamento pontifício.

quinta-feira, 3 de agosto de 2017

Não lavo as mãos na bacia de Pilatos


Péricles Capanema

Em 16 de julho, na reunião de abertura do 23º Encontro do Foro de São Paulo (organização fundada por Fidel Castro e Lula para coordenar ações de partidos esquerdistas da América Latina), realizada em Managua, capital da Nicarágua, a senadora Gleisi Hoffmann, presidente do PT, entre outras abominações, das quais algumas abaixo, apoiou enfaticamente a farsa da Constituinte venezuelana: “O PT manifesta seu apoio e solidariedade ao governo do PSUV, seus aliados e ao presidente Nicolás Maduro. Temos a expectativa de que a Assembleia Constituinte possa contribuir para uma consolidação cada vez maior da revolução bolivariana”. Foi adiante na mesma direção: “Aproveitamos para manifestar nosso irrestrito apoio e solidariedade aos companheiros do Partido Comunista Cubano. Este ano comemoramos o centenário da Revolução Russa de 1917 e também o cinquentenário da queda em combate do guerrilheiro heroico o comandante Ernesto Che Guevara”. De novo o PT manifesta, em autenticidade reveladora, seus pendores tirânicos na imposição do programa socialista, orgulhoso de se colocar na esteira do comunismo russo e do comunismo cubano.

Em 30 de julho, o Conselho Eleitoral da Venezuela (CNE) anunciou que 41,53% dos eleitores elegeram a nova Assembleia Nacional Constituinte. Teriam comparecidos 8.089.320 eleitores, 41,53% do total. A oposição afirma, houve fraude escandalosa. O comparecimento terá sido de 12,4% do eleitorado. Leopoldo López e Antonio Ledezma, líderes da oposição, voltaram a ser presos, provocando grandes reações internas e internacionais O governo venezuelano, indiferente, com a medida deixava claro a intenção de radicalizar no caminho encetado.

A Conferência Episcopal Venezuelana, em sua conta do Twitter, imediatamente postou pungente súplica a Nossa Senhora de Coromoto, padroeira da Venezuela: “Virgem Santíssima, Nossa Senhora de Coromoto, padroeira celestial da Venezuela, livrai a nossa pátria das garras do comunismo e do socialismo”. Poucos dias antes, Dom Jorge Uroza, cardeal-arcebispo de Caracas, advertiu, “o país está em ruínas e as pessoas estão morrendo de fome”. Alertou ainda o Purpurado: “Falta comida, remédios, temos a inflação mais alta do mundo, o povo rechaça o governo”.

No Exterior, a Rússia tomou clara posição a favor de Nicolás Maduro: “Esperamos que aqueles membros da comunidade internacional que querem rejeitar os resultados das eleições venezuelanas e aumentar a pressão econômica sobre Caracas mostrem contenção e renunciem a estes planos destrutivos”, advertiu comunicado do Ministério do Exterior da Rússia. Cuba, Equador, Nicarágua na mesma direção de respaldo vergonhoso.

No Brasil, PT, PC do B, PSOL e PCB aprovam a tirania bolivariana. José Dirceu foi cinicamente claro: “O massivo comparecimento à eleição da Assembleia Nacional Constituinte, convocada pelo presidente Nicolás Maduro, abre um caminho institucional e democrático para resolver a crise venezuelana”. Ainda no Brasil, o PDT e Rede evitam se posicionar por razões facilmente conjeturáveis; deixar público o que sente o coração pode escandalizar e tirar votos. Por seu lado, até agora, a CNBB, histórica companheira de viagem do PT, também não se posicionou. Entristece a no mínimo lerdeza da CNBB em seguir o bom exemplo de sua irmã, a Conferência Episcopal Venezuelana. Tomara não caminhe, como é o deprimente hábito, nos passos do PT acolitando uma ditadura assassina, que esfomeia o povo, segundo palavras do cardeal-arcebispo de Caracas.

O governo brasileiro age bem, não reconhece a legitimidade da Constituinte. Diz nota do Itamaraty de 1º de agosto: “O governo brasileiro repudia a recondução ao regime fechado de Leopoldo López e Antonio Ledezma, ocorrida um dia após a votação para a escolha de uma assembleia constituinte em franca violação da ordem constitucional venezuelana. O Brasil solidariza-se com o sofrimento dos familiares de Antonio Ledezma e Leopoldo López, em particular suas mulheres, Mitzi Capriles e Lilian Tintori. A prisão de dois dos mais importantes opositores ao governo do presidente Nicolás Maduro é mais uma demonstração da falta de respeito às liberdades individuais e ao devido processo legal, pilares essenciais do regime democrático. O Brasil insta o governo venezuelano a libertar imediatamente López e Ledezma”.

O Brasil agirá em sintonia com vários países da América Latina na condenação às atitudes tirânicas do governo venezuelano. Ótimo. Na mesma direção, agirá a Comunidade Europeia. De maior importância, os Estados Unidos têm linguagem e ação mais contundente. O presidente Donald Trump declarou pouco dias antes da votação para a Constituinte: “Ontem, o povo venezuelano mais uma vez deixou claro que apoia a democracia, liberdade e a lei. Ainda assim suas ações fortes e corajosas continuam sendo ignoradas por um líder ruim que sonha em se tornar um ditador. Os Estados Unidos não ficarão parados enquanto a Venezuela desmorona. Se o regime de Maduro impuser sua Assembleia Constituinte em 30 de julho, os EUA irão tomar ações econômicas fortes e rápidas". Já foram decretadas sanções duras. Outras virão. Condenações e sanções de países de regime democrático e de organizações internacionais de relevo estão prometidas, certamente acontecerão com efeitos benéficos.

Visto isso, o que faz aqui o título do artigo? Tudo, embora à primeira vista possa parecer o contrário. As por ora medidas tomadas pelos grandes do mundo em defesa do pequenino aos olhos dos potentados, esfomeado e tiranizado povo venezuelano são insuficientes. Gritantemente insuficientes.

Pilatos diante da turba enfurecida, reconheceu a inocência de Nosso Senhor, aliás solar. É juízo de um espírito que via com retidão e justeza. Representava ali o maior poder da Terra, falava em nome da justiça e nada fez de eficaz para defender o Justo, a seus olhos pobre um desvalido galileu. Omitiu-se, passou à História como exemplo repugnante de oportunista covarde. Ninguém levou a sério o “a vós pertence toda a responsabilidade”. Pertencia a ele. “Pilatos, vendo que nada aproveitava, mas que cada vez era maior o tumulto, tomando água, lavou as mãos diante do povo, dizendo: Eu sou inocente do sangue deste justo; a vós pertence toda a responsabilidade” (Mt, 27, 24-25).


Se os grandes da Terra lavarem as mãos na bacia de Pilatos, o homem que reconheceu a inocência de Cristo, o injustiçado povo venezuelano, como Cristo, objeto da compaixão inerte de tantos, subirá o Calvário e à vista de todos será crucificado no Gólgota pelos modernos carrascos da legítima esperança popular. Minha súplica aqui é, cada um dos grandes que agora falam, possa também proclamar com verdade: “não lavo as mãos na bacia de Pilatos”. Para isso, reverente repito a oração postada no site da Conferência Episcopal Venezuelana: ““Virgem Santíssima, Nossa Senhora de Coromoto, padroeira celestial da Venezuela, livrai a nossa pátria das garras do comunismo e do socialismo”.