domingo, 14 de outubro de 2012

A revolução cultural encharca tudo


A revolução cultural encharca tudo

Péricles Capanema

Revolução cultural, expressão muito na moda entre gente no vento, tem raiz na Revolução Cultural chinesa da década de 60. Foi aplicada na China de 1966 a 1968, de algum modo até a morte de Mao Tsé-tung, 1976. A expressão chinesa significa revolução de civilização, de outro jeito, concepções e métodos que criariam nova civilização sobre os escombros da antiga. Tinha como característica a manutenção do fervor revolucionário (se preferirmos, da excitação) mediante estado incessante de luta e superação, visto como condição necessária para o triunfo da revolução comunista na alma e na sociedade. Prometia acabar com o passado e as tradições ainda existentes na China e, congruente, liquidar “as sumidades acadêmicas reacionárias da burguesia e todos os burgueses ‘monarquistas’”. Ponto importante da revolução cultural foi o realce na criação do homem comunista. E ia por aí afora.

A Revolução Cultural jogou o país no caos, deixou rastro de atraso e desorganização, matou mais de um milhão de pessoas e acabou sufocada no sangue pelo próprio governo. Morreu de vez? Coisa nenhuma. Continuou como ideário utópico inspirador. Martelo, não foi apenas revolução na cultura, priorizava a mudança de hábitos, costumes e convicções, visava criar sociedade nova.

A revolução cultural aclimatou-se na terminologia de nossos dias e, fiel a sua origem, passou a designar sobretudo a investida contra tendências e costumes conservadores, no resumido, uma forma de ataque à sociedade tradicional. É uma revolução com tônica nas tendências, nos costumes, na maneira de ver a vida, nas mentalidades e, certo sentido, também nas convicções que as embasam. A revolução política estaria fora da revolução cultural.

A revolução cultural, como entendida hoje, é consequência lógica das teses gramscianas. Antônio Gramsci não tratou da revolução nas tendências, falou mais sobre convicções que sobre costumes. Sem dúvida, entretanto, foi pensador batuta da importância dos fenômenos revolucionários na sociedade civil, cuja conquista ele priorizava em relação ao domínio do Estado pelo comunismo. Parte do que foi produzido pelos mais celebrados membros da Escola de Frankfurt pode também ser considerado base teórica da revolução cultural.

Os fenômenos da revolução cultural não são novidades, sempre foram da maior importância. Com ou sem teoria clareadora, encharcam a vida toda e tomam toda a vida, da infância à velhice. Fluem das características e debilidades da natureza humana vulnerada pelo pecado. O novo é o enorme embasamento teórico que veio emergindo nas últimas décadas.

É possível falar também, com toda propriedade, em contrarrevolução cultural. Ela é a criação e fortalecimento das tendências, costumes, hábitos de vida que favorecem, em última análise, a ordem temporal cristã. Até um simples jarro de flores bonitas dispostas com arte pode ser entendido como contrarrevolução cultural, criador de predisposições favoráveis à ordem. Temos aqui um espaço imenso, em geral subestimado pelos meritórios batalhadores do Bem.

terça-feira, 9 de outubro de 2012

Comunismos de cara nova


Comunismos de cara nova

Péricles Capanema

Um tipo de comunismo triunfou ao longo do século 20, o estatista. Privilegiava a via política e a luta pelo poder. Jacobinos, os partidos comunistas visavam de imediato a conquista do Estado, dominar o aparato institucional, o sistema educacional, impor o programa socioeconômico e, com esse conjunto de medidas, atingir o fim último, modificar o homem e a sociedade. Seu exemplo mais conhecido, de maior êxito e seu maior fracasso foi a tomada do poder na Rússia por métodos violentos e a transformação do país em laboratório e agente da revolução mundial.

Ali, a doutrina oficial, o marxismo ganhou uma achega, o leninismo. Ao marxismo, gradualista, juntou-se um componente voluntarista, o leninismo. O marxismo-leninismo passou a ser a doutrina oficial da Rússia.

Fracassou? No principal, sim, o russo não ficou comunista. E a sociedade nova que os comunistas blasonavam estar criando sobre os escombros da antiga era um horror, distante anos-luz do utopismo rosado da doutrina.

Pelo contrário, a utopia vivida e a esperança encarnada mostraram cara celerada e famélica. Os proclamados servidores da causa popular viraram tiranos. Nada disso resistia à comparação com o Ocidente desenvolvido. Este é o ponto cardeal.

Já na década de 20 ─ fenômeno que se agravou nas décadas seguintes ─ estava penosamente notória para os comunistas a monumental impotência dos recursos estatais para criar o “homem novo” da utopia socialista. E ainda como era um desastre a sociedade de “os amanhãs que cantam” que os comunistas estavam construindo. Eram “amanhãs” que choravam de atraso, tirania e fome. Muita gente da esquerda comunista, milhões, estava achando que tinha montado o cavalo errado e debandava para posições socialdemocratas, quando não francamente direitistas. Diante do quadro desolador, entre os teóricos marxistas se destacou Antônio Gramsci (1891-1937), com relevância muito maior nas décadas posteriores ao falecimento, que ofereceu teoria nova para o movimento comunista.

Suas doutrinas foram boia de salvação para milhões de esquerdistas que se afogavam na descrença e vergonha, causadas pelo fracasso retumbante dos regimes socialistas do Leste Europeu. Tudo indicava, existia ainda uma via transitável na esquerda. Com Gramsci e alguns outros de orientação semelhada, o comunismo mais modernizado muda o foco: deixa de ser jacobino, de buscar a ditadura política na bruta sem a anterior hegemonia cultural e parte para a conquista prévia da sociedade civil. Aí começaram a tomar corpo os comunismos de cara nova. Mudaram até de nome.

Em que pontos Gramsci pôs as bases para as caras novas do comunismo ou, dá na mesma, os comunismos de cara nova? Em primeiro lugar, a criação do homem novo comunista viria inicialmente e com prioridade da mudança das mentes na sociedade civil, só depois seguida pelo domínio do Estado, e não sobretudo pela conquista direta do poder do Estado, na ditadura política sem hegemonia cultural. A ênfase passava a ser a hegemonia cultural, expressa no controle da educação, das religiões, dos meios de divulgação, uma longa marcha através das instituições da sociedade civil. A ideologia comunista, refletida num sistema de valores, hábitos mentais e de vida, dominaria de alto a baixo a sociedade. E seria a grande conquista. O domínio do Estado aconteceria depois da direção intelectual e moral da sociedade, seria consequência forçada. Haveria caminhada segura rumo à sociedade comunista do futuro.

Na embalagem do produto em sua apresentação mais recente, a ditadura, a fome, o cinismo moral, realidades avassaladoras na Europa Oriental e em tantos outros países dominados pelo comunismo, aparecem como deformações históricas na aplicação do comunismo e não decorrências lógicas e necessárias da sua doutrina e mentalidade dos seguidores. Os comunismos novos, defendidos parcialmente, ou no todo, por partidos e organizações de esquerda, via geral têm na plataforma o reconhecimento da democracia formal, propugnam legislação libertária, como aborto amplo e favorecimento do homossexualismo, aprofundamento do caráter laico do Estado e a recusa da ditadura do proletariado como instrumento de aplicação do programa coletivista e igualitário.

E na prática? Na prática, a doutrina comunista é totalitária e seus seguidores na grande maioria dos casos têm a intolerância dos utopistas à realidade. Ninguém é tão intolerante quanto um utopista. Podem escrever, não vamos ter o casamento do comunismo com a liberdade. Nunca.

Deixei de lado, seria coisa demais para um artigo só, uma forma de comunismo novo que está medrando em especial na América Latina, misto de populismo jeca, estatismo brucutu e formalismo democrático de casca. Manifesta-se, exemplo, na Venezuela, com Hugo Chávez, napoleão-de-hospício, e na Bolívia, com Evo Morales, índio de araque. Têm, entretanto, traços comuns com os comunismos novos descritos lá em cima.

segunda-feira, 8 de outubro de 2012

A charada Vladimir Putin


A charada Vladimir Putin

Péricles Capanema

Vladimir Putin é o grande enigma entre os dirigentes políticos importantes do mundo. Advogado, antigo coronel da KGB, sucessor de Boris Yeltsin em 1999, manda na Rússia há pelo menos 13 anos e podemos ter por um tempão ainda o misterioso Putin no leme.

Qual o mistério do homem que foi agente secreto durante muitos anos? Ele tem um lado nada secreto, de um óbvio ululante. Para o russo comum, Vladimir Putin é vacina eficaz contra a insegurança, a instabilidade e o medo do desconhecido, caução de ordem que funciona. Depois de décadas de experiência socialista que triturou o país e dos anos caóticos de Yeltsin, Putin chegou para acabar com a bagunça. Quem tem medo da volta do caos ou da ditadura, agarra-se a ele, favorecido pela sua aura de autocrata sensato, uma versão de déspota esclarecido do século 21. É, pois, congruente e esperável, que Putin tome medidas de proteção da ordem pública, impedindo a ação de fatores desagregadores. Napoleão, Mussolini, Franco, em certo sentido de Gaulle, e até Stalin, tantos outros, centenas, em medida maior ou menor, jogaram esse papel no imaginário popular.

Vistos como fatores de estabilidade, são líderes políticos em geral com apoio forte onde maior é a insegurança e o medo do futuro: mulheres, idosos, pobres, jovens. São menos populares nas faixas em que é menor a sensação de insegurança e instabilidade: pessoas maduras, com boa educação e patrimônio. A autonomia pessoal as distancia muitas vezes desse tipo de salvador da pátria, facilita a distância crítica.

Via geral tal tipo de líder apela para o nacionalismo exacerbado, a pátria miticamente idealizada, geratriz, protetora e promotora da realização pessoal. Dentro de tal figurino, Putin lamenta continuamente a derrocada do império soviético, não mais considerado realização do internacionalismo proletário, mas construção geopolítica grã-russa. Nesse sentido, é visto na Rússia por muitos como continuador da ambição  multissecular dos czares, um possível restaurador da grandeza do passado grão-russo e de seus ideais de expansão. Nacionalista, ele ajuda partidos nacionalistas no entorno da Rússia, e dificulta a expansão da União Europeia, utopia supranacional, libertária e de capa democrática (assim como Putin) mas, no curto e no médio prazo, de signo contrário ao utopismo grão-russo.

Em choque, duas utopias de raiz totalitária, a Rússia de Putin e a Europa de Bruxelas. De uma banda, os povos europeus veem necessidade de se unir para fazer frente ao expansionismo do gigante que está em sua fronteira oriental e já mostrou repetidas vezes que tem sonhos imperialistas. De outra, os habitantes da Rússia julgam sensato enrijecer as defesas de seu país e formar alianças para se opor ao expansionismo da Europa unida, apoiada por trás pelos Estados Unidos. A respeito, recordam amargurados que no passado existiram trágicas agressões de coligações invasoras, uma comandada por Napoleão, outra por Hitler. Aqui a explicação do fenômeno Putin não está inteira, mas quem quiser clarear o sucesso espantoso do homem sem isso, falseia o quadro.

O passado europeu assombra o presente russo e dele se vale o enigmático Putin. E vai se aproveitar, seu futuro político depende de ele se apresentar exitosamente a seus eleitores como um misto de Napoleão, Stalin e Alexandre III.

Socialismo: doutrina lé em baixo, mentalidade lá em cima


Socialismo: doutrina lá em baixo, mentalidade lá em cima

Péricles Capanema

A queda do Muro de Berlim, novembro de 1989, simbolicamente foi o grande marco da derrocada dos regimes socialistas da Europa Oriental. Na ocasião, ruiu como castelo de cartas o comunismo na maioria dos países do Leste Europeu, de outro jeito, os regimes de inspiração socialista que nunca engrenaram. Poucos anos antes, agosto de 1984, haviam sido chibatados pelo então cardeal Josef Ratzinger como vergonha de nosso tempo. O Purpurado lembrou ainda que, dominadas pelo socialismo real, penavam nações inteiras em condições de escravidão indignas do homem. As receitas do socialismo real, invariavelmente estatizantes, foram rota infalível para a ruína. Seu fracasso estrepitoso deixou rastro de sangue, ditadura e fome.

Logo depois entrou na moda a expressão o fim da História, raiz hegeliana, cunhada pelo historiador Francis Fukuyama para indicar que a democracia liberal e o capitalismo já não tinham opositores da importância e passavam a ser vitoriosos perenes. Expressão que, aliás, desapareceu do mapa, já sumiu também o otimismo ingênuo que foi seu caldo de cultura.

O socialismo real, de outro jeito, o socialismo como existiu historicamente, fracassou de vera? Fracassou, não dá para encapotar, produziu miséria e ditadura nos países em que foi aplicado. Gerou desalento e vergonha até mesmo em correntes de esquerda e seus defensores mais cegos via geral estão mal à vontade ao justificá-lo. Até na infeliz Cuba se arrastam raquíticos ensaios de propriedade privada e livre iniciativa para tentar arrancar o país do atoleiro. E começam a ser aplicados na Coréia do Norte pelo mesmo motivo. Numa palavra, socialismo real ═ atoleiro. E também ficou desmoralizado o marxismo, invocado sempre como justificação teórica.

Fracassou o comunismo? Aqui a questão é outra. Em termos, sim. Em termos, não. O capitalismo é julgado pelos resultados, as utopias são julgadas pelas aspirações; o comunismo é uma utopia igualitária e coletivista. E as aspirações comunistas são vistas como nobres por muita gente: liberdade, igualdade, fraternidade. Aliás, para a maioria dessa muita gente, o ideal se resume num ponto: o comunismo tem pena dos pobres. Importa pouco ou nada no caso que onde foi aplicado quem mais sofreram foram os pobres.

Nos escombros do socialismo real medra a utopia igualitária e remanesce o que, certo sentido, é o mais importante: a mentalidade socialista. Ele embebe, em graus diversos, multidões sem fim, até mesmo muitos dos mais ativos adversários do comunismo. Gente com essa mentalidade privilegia as estruturas sobre a pessoa, o Estado sobre a sociedade, as soluções de força sobre as soluções de base moral; congruentemente, subestima a importância da família, sobrevaloriza os fatores econômicos sobre os religiosos e morais. Enfim, tem simpatia por soluções coletivistas. Esse sem número de pessoas embebidas de mentalidade socialista é caldo de cultura potencialmente ativíssimo, dependendo de circunstâncias hoje imprevisíveis, para experimentos socialistas que deixarão, de novo, rastros de sangue, miséria e tirania.