terça-feira, 24 de dezembro de 2019

Noção viva do verdadeiro perigo


Noção viva do verdadeiro perigo

Péricles Capanema

Em começos de 1967 (governo Castelo Branco) o prof. Plinio Corrêa de Oliveira tomou posição pública contra a Lei de Segurança Nacional (decreto-lei nº 314 de 13 de março de 1967), pedindo sua revogação ou, pelo menos, larga refusão. Suas declarações podem ser consultadas no Catolicismo nº 196 de abril de 1967 (a coleção do mensário está na rede).

Começa o líder católico afirmando que a TFP apoia resolutamente o movimento que se esboçava em vários setores da opinião em prol da revogação ou refusão do decreto lei nº 314.

Enumera razões entre as quais destaco: ” Nada mais eficaz para persuadir a quem quer que seja da necessidade de tal refusão, do que a análise – ainda que sucinta – de alguns dos dispositivos do referido diploma. Por exemplo, reza o seu art. 48: "A prisão em flagrante delito ou o recebimento da denúncia, em qualquer dos casos previstos neste decreto-lei, importará, simultaneamente, na suspensão do exercício da profissão, emprego em entidade privada, assim como de cargo ou função na administração pública, autarquia, em empresa pública ou sociedade de economia mista, até a sentença absolutória". Assim, basta que seja recebida pelo Juiz a denúncia (o que de nenhum modo quer dizer que o crime e sua autoria estejam cabalmente provados) e já uma sanção severa se descarrega sobre o acusado. Essa sanção poderá durar por tempo indeterminado, pois, quando uma ação se inicia, é quase impossível prever quanto tempo levará para percorrer todos os seus trâmites, tantas vezes tumultuados por imprevistos de toda ordem. Sujeitar assim uma pessoa possivelmente inocente a uma punição gravíssima, é contrário aos mais fundamentais princípios da Moral e do Direito, os quais preceituam a iliceidade de qualquer castigo aplicado ao inocente. [...] Diante de tanta severidade, oposta à nossa formação jurídica e à índole de nosso povo, fica-se a perguntar qual o interesse público que a justifique”.

Ao analisar as supostas razões que a justificariam tem observações especialmente atuais o prof. Plinio Correa de Oliveira: “No Brasil, ninguém há que se oponha ao comunismo com intransigência tão constante e meticulosa quanto a TFP. Somos, pois, inteiramente insuspeitos para dizer que aqui o perigo comunista – considerado enquanto consistente na implantação direta de um regime marxista – é remoto. O Partido Comunista se arrasta entre nós, desprestigiado e impopular. [...] O verdadeiro perigo comunista no Brasil não resulta diretamente da atuação do Partido Comunista, porém da expansão contínua, rápida, e o mais das vezes velada, de certas formas de progressismo, rotulado de socialista ou cristão, de demo-cristianismo esquerdista, etc. Ele tende a derruir o instituto da família por leis e costumes que lhe arruínem a estabilidade, e desprestigiem a autoridade paterna ou materna. Ele vai minando e mutilando gradualmente a propriedade privada por uma série de leis de índole socialista e confiscatória. Assim, sem o perceber, por um processo semelhante ao da erosão, o País vai perdendo seu húmus cristão.”

Humus cristão, seiva cristã, perdida muito mais pela decadência moral, pela derrocada do instituto da família, pelo progressismo religioso, que estão na origem de organismos como a CPT, CUT e MST, por leis e costumes que vão erodindo o caráter cristão do País do que pela pregação esclerosada do antigo PCB ou de seus êmulos de hoje. Ali se aninhava o verdadeiro perigo comunista em 1967, advertia o prof. Plinio Corrêa de Oliveira. Aqui continua a se aninhar o verdadeiro perigo comunista em 2020.

O que mudou no Brasil?


O que mudou no Brasil?

Péricles Capanema

Quase 60 anos atrás, 1961, Nelson Rodrigues escreveu: “Hoje em dia, chamar um brasileiro de reacionário, é pior do que xingar a mãe. Não há mais direita, nem centro ▬ só há esquerda neste país. Perguntem ao professor Eugênio Gudin: ▬ ‘Você é reacionário?’. Sua resposta será um tiro. Insisto: ▬ o brasileiro só é direitista entre quatro paredes e de luz apagada. Ao contrário de setenta milhões de patrícios, eu me sinto capaz de trepar numa mesa e anunciar gloriosamente: ▬ Sou o único reacionário do Brasil. E, com efeito, agrada-me ser xingado de reacionário. Por toda parte, olham-me, apalpam-me, farejam-me como uma exceção vergonhosa.”

Comenta ainda o dramaturgo, considerado o maior do Brasil: “Eu, com todo o meu reacionarismo, confesso e brutal, sou o único autor [de teatro], o único que, até hoje, não mereceu jamais um mísero prêmio. Pois bem. O Dias Gomes, com o seu ‘Pagador de promessas’, fez um rapa de prêmios. O Flávio Rangel não dá um espirro sem que lhe caia um prêmio na cabeça. O meu amigo Augusto Boal, premiado. O Vianinha, premiadíssimo”. Dias Gomes e Vianinha foram do PCB, os dois outros são também autores de esquerda.

Em 2020, o brasileiro só se confessa direitista entre quatro paredes e de luz apagada? “Só há esquerda nesse país” continua válido? Vamos distinguir. Ponto capital: o Brasil de 1961, em boa parte, mantinha nível de moralidade privada e de moralidade pública que já não temos; melhor, moralidade e respeitabilidade, eram el larga medida penhor de futuro brilhante. Nesse sentido, sob o ponto de vista do que hoje se intitula revolução cultural, despencamos para a esquerda. Ficamos diferentes para pior, apareceram mais nítidas e mais pesadas nuvens negras no horizonte do futuro.

Faltam os prêmios. Continuam a jorrar só para a autores de esquerda? Por que naqueles anos de generalizada inibição e temor direitistas ▬ de hegemonia cultural esquerdista na posse dos microfones ▬, ninguém premiava Nelson Rodrigues? Simples, os instrumentos pelos quais se exprimia na época a opinião que se publica (diferente da opinião pública) estavam a bem dizer todos na mão da esquerda, comitês, comissões, diretorias de associações, tanta coisa mais. E ela só premiava e premia gente da patota. E assim, na promoção de numerosos corifeus da esquerda por meio de ambientes eruditos e posições de destaque (as patotas prestigiam patotas), não mudou nada ou quase nada. Temos ainda atuante uma carapaça revolucionária, já bastante encarquilhada, asfixiando um miolo vivo em que existe muita coisa boa. Em resumo, o brasileiro comum em boa medida permanece refratário à pregação esquerdista.

Não nos iludamos, este mundo de letrados esquerdistas, insulado do público em redoma tóxica, representa realidade artificial, postiça, mas sedimentada. Infelizmente ainda hoje sua orientação predomina nas sacristias, na academia, nas redações, em muitos clubes grã-finos. E isso projeta visão deformada do que seja o Brasil.

Alguém, por exemplo, já ouviu falar que a CNBB, CIMI ou CPT tenham promovido para os galarins sacerdote conservador, mesmo que seja por distração? Não existe. Nos últimos anos algum autor de direita foi distinguido com prêmio literário de valor? Nas redações despontam jornalistas com traços direitistas e conservadores, é fato. Por quê? Motivo pouco enfatizado, para as direções das empresas é conveniente tê-los como colaboradores, pois atraem para suas publicações e programas leitores e ouvintes conservadores. O descolamento entre o público comum e docentes, fortíssimo na academia, aqui é bem menor.

Em um aspecto, o Brasil de nossos dias é muito diferente do Brasil de 1961, em que a patrulha ideológica marcava forte. Nas redes, com audiência, há sites direitistas e conservadores dos mais variados matizes e orientações. De alto a baixo da opinião brasileira, em especial na parte anônima, que não se publica, que tem poucos microfones à disposição, cresce um movimento de reação. Quem diz reação, diz gente que reage, reacionários. Repito, mudou o Brasil, o reacionário e o conservador se manifestam com decibéis cada vez maiores. Em numerosos setores, abrigando-se em numerosas correntes, existem conservadores e reacionários atuantes.

Falei acima de matizes e orientações diferentes. Com efeito, as discrepâncias tantas vezes eriçadas provocam choques, às vezes desagregadores e destrutivos. E aqui começo o mais importante de minhas considerações. Liberais na economia, contrários à estatização, são tantas vezes libertários em costumes. Temos conservadores nos costumes, mas com pendores estatizantes.

Vou tentar clarear parte da situação, o demônio pesca em águas turvas. Para isso olho quintal vizinho, a França. Por razões de tempo e espaço, trato do tema por cima. Lembro divisão conhecida da direita francesa (com muitas adaptações seu conhecimento ilumina a cena brasileira): legitimista, bonapartista, orleanista.

A legitimista ▬ um dia quis Luís XVIII, mais ainda, sonhou com Carlos X, recusou Napoleão no trono ▬ via de regra é tradicionalista, monárquica, católica. Valoriza elites enraizadas na História, não é estatizante, seu foco é a defesa da família, espera relativamente pouco da ação do Estado, dá mais importância ao costume que à lei. A mais, luta pelos direitos das sociedades intermediárias (princípio de subsidiariedade). Líderes com certa nota patriarcal; melhor, paternal.

A bonapartista recusa o “Ancien Régime”, em geral subestima quando não despreza as elites com raízes históricas, cria uma nova elite com base na burocracia estatal, em especial no elemento armado, coloca à frente de suas reivindicações não a família saudável e as sociedades intermediárias, mas a pátria (de outro modo, subestima quando não nega o princípio de subsidiariedade). Engrandecimento nacional (gigantismo), pendores centralizantes e autoritários, líderes carismáticos e populistas. Por vezes, jacobina.

A direita orleanista aceitou a Revolução Francesa, mas quer o Rei, limitado constitucionalmente, como fator de ordem e unidade. Economia liberal, moral liberal, Estado secular. Instituições nascidas dos princípios da Revolução Francesa, sociedade moldada por eles, tem algo de república coroada. Líderes pragmáticos e gestores, em geral de mentalidade girondina.

Termino. O curso da lógica traz a pergunta: pra quem não é esquerdista, que tipo de direita preferir para o Brasil? Quais características o movimento conservador deveria privilegiar. Respondo. Sou católico, propugno a doutrina social da Igreja. Defendo o princípio de subsidiariedade e a ampliação da influência da família na sociedade. Recuso o estatismo, o populismo para mim é falsa solução para problemas reais. Convido-o, leitor, a alinhar as características de sua preferência. E os perigos que pretende evitar com elas. Tem motivo importante, o Brasil de hoje não é o de 1961, vergastado por Nelson Rodrigues; na sociedade começam a se generalizar sem timidezes conservadores e reacionários. Os rótulos valem menos que os conteúdos. Que conteúdo terão tais correntes de opinião daqui a alguns anos?

quarta-feira, 18 de dezembro de 2019

Con mi tambor


Con mi tambor

Péricles Capanema

“Com meu tamborzinho”, tanto faz, canção de Natal, com enorme força evocativa. Um pobre menino tamborileiro, só tem um tamborzinho, vai até Belém com os pastores e canta diante da gruta. E o Menino Jesus sorri para ele.

El camino que lleva a Belén
Baja hasta el valle que la nieve cubrió
Los pastorcillos quieren ver a su rey,
Le traen regalos en su humilde zurrón
Al Redentor, al Redentor.
Ha nacido en un portal de Belén el Niño Dios.
Yo quisiera poner a tus pies,
Algún presente que te agrade, Señor.
Más, tú ya sabes que soy pobre también,
Y no poseo más que un viejo tambor,
Viejo tambor, viejo tambor.
En tu honor frente al portal tocaré,
Con mi tambor.
El camino que lleva a Belén,
Yo voy marcando con mi viejo tambor.
Nada mejor hay que yo pueda ofrecer,
Su ronco acento es un canto de amor,
Al Redentor, al Redentor.
Cuando Dios me vio tocando ante el,
Me sonrió.

Por que lembro agora a canção ouvida no mundo inteiro? Razão simples, ela nos apresenta, no seu frescor simples, de chofre, a verdade inteira. Todos nós só temos um tamborzinho velho para oferecer ao Menino Jesus. O que podemos Lhe oferecer? O que tivermos de melhor. Um tamborzinho, uma baqueta e nossa voz. O pequeno tamborileiro foi até Belém com os pastores e ´na frente da gruta, tocou seu tamborzinho. O Menino Jesus sorriu para ele. Que prêmio maior poderia esperar?

Duas canções, em especial, enchem os ares nas festas de Natal. Uma está acima, o “El tamborileiro”. A outra é o “Stille Nacht, heilige Nacht (Noite feliz). Noite serena, noite de paz, noite santa. Tudo dorme, um par está desperto, o casal sagrado vigia o Menino. E a notícia do Salvador começa lentamente a circular, mas os primeiros a serem avisados da chegada não são os grandes da Terra, mas pastores.

Nos dois povos, espanhóis e alemães, se quisermos, nas duas culturas, domina um olhar comum: para que o Natal seja vivido em espírito cristão é preciso colocar óculos infantis, perceber que nesses dias a única atitude correta é a da mais despretensiosa pobreza de espírito, imergir num ambiente de pequenez humana. E o ar de paz e esperança não provém do esplendor da primavera, no festival da luz, das flores e do clima acolhedor. Tem origem no clima da noite, invernal e fria. Para viver tal ambiente, cada um de nós, precisa querer oferecer ao Menino Deus o que de melhor temos, o nosso tamborzinho, com o qual cantaremos à frente da gruta uma canção. E o Menino Jesus sorrirá para nós.

Logo depois, meses talvez, anos, quem sabe, guiados pela estrela de Belém, chegaram à Palestina os três reis magos, primícias da conversão dos povos pagãos. Entrementes, os filhos de Abraão, Isaac e Jacó passavam indiferentes ao lado do Menino, de José e de Maria. Belchior, Gaspar e Baltazar. Diz a legenda, Belchior veio da Europa, Gaspar da Ásia, Baltazar da África. Ofereceram ouro, incenso e mirra. Assim, o Papa são Gregório Magno explica seu simbolismo: “Ao Senhor que nasce ofereçamos ouro, a fim de confessarmos que Ele reina onde quer que seja; ofereçamos incenso, para crermos que aquele que apareceu no tempo é o Deus que existe antes dos tempos; e ofereçamos mirra, para crermos que também assumiu a nossa carne mortal aquele em cuja divindade impassível acreditamos”.

Santo Natal, graças de Nossa Senhora, 2020 protegido pelo Menino Jesus aos leitores, familiares, amigos, conhecidos. Que cada vez mais protejam o Brasil.


terça-feira, 17 de dezembro de 2019

Privatização à brasileira


Privatização à brasileira

Péricles Capanema

Em 10 de fevereiro de 2019 escrevi artigo, “Vale, privatização de mentirinha”. Lembrei-me dele quando li no Estadão de 30 de novembro último que o governo planejava vender refinarias da Petrobrás. São passos da política de privatização; ela visa aqui diminuir a presença do Estado e colocar concorrência no setor, assim aumentam a eficiência e baixam os preços que pesam no cangote dos brasileiros. Em termo. Em termos. Vamos ver.

Transcrevo parte da delação de Joesley Batista, consta do mencionado artigo: “Aí ele [Aécio] falou, ‘não pode porque eu já nomeei’. Parece que a Vale tem uma governança pra ter uma independência pra escolher presidente, mas parece que eles têm algum jeito de fraudar esse troço e virar presidente alguém com nomeação política. Ele [Aécio] me explicou isso, disse ‘nós fizemos um treco lá que em tese é independente, mas na prática o candidato da gente acaba ganhando’. Ele disse que eu poderia escolher qualquer uma das quatro diretorias, que eu escolhesse e que ele botava quem eu quisesse, se fosse o Dida, ele botava o Dida”.

A privatização da Vale é de 1997. Vinte anos depois, meter um cupincha seu na presidência, naquele momento não podia, porque os políticos já tinham feito a nomeação. Mas Joesley poderia escolher um nome para as quatro diretorias restantes, que não haveria problema. Observei ainda no referido texto: “Boa parte das empresas privatizadas depois de 1997 hoje se encontra nas mãos de estatais chinesas (ou, por outra, nas mãos do Partido Comunista Chinês) e também nas mãos de estatais de países ocidentais”.

Agora trato da privatização das refinarias da Petrobrás: Informa o Estadão: “A Petrobrás selecionou  a chinesa Sinopec, o fundo Mubadala e os grupos brasileiros Ultra,e Raizen para a segunda fase do processo de vendas de quatro refinarias”. Deixo de lado de lado os grupos ultra e Raizen. Pinço outra informação: “A gigante de petróleo Saudi Aramco teria desistido do processo.” E ainda outra: “O histórico de controle de preços dos combustíveis no Brasil e o modelo de privatização que deixará a Petrobrás com forte presença no refino do Sudeste, região mais rica do Páis, reduziram a disputa pelas refinarias da estatal. As estimativas iniciais de que a petrolífera poderia arrecadar até 18 bilhões de dólares pelas refinarias foram reduzidas para menos de 10 bilhões de dólares”.

Passo a passo:

1) A Sinopec é estatal chinesa, mais de 250 mil empregados, e já tem enorme presença na economia brasileira. De outra forma, a Petrobrás, estatal brasileira, pretende entregar à Sinopec, estatal chinesa (dirigida pelo governo chinês, isto é, pelo Partido Comunista Chinês) uma parte de suas refinarias. O Partido Comunista Chinês aumentará sua influência na economia brasileira. Privatização, como se vê.

2) O fundo Mubadala é propriedade do governo do Abu Dhabi. A Petrobrás, estatal brasileira, pretende entregar para o fundo Mubadala, estatal do Abu Dhabi, uma parte de suas refinarias. O governo de Abu Dhabi dirigirá parte do refino no Brasil. Privatização, como se vê.

3) A Saudi Aramco estava disputando refinarias da Petrobrás. Parece que desistiu. A Saudi Aramco é estatal saudita. O governo de Riad aumentaria sua influência sobre a economia brasileira.

4) “O histórico do controle de preços no Brasil e o o modelo de privatização que deixará a Petrobrás com forte presença no refino do Sudeste, região mais rica do País,  reduziram a disputa”. As empresas temem que o governo e a Petrobrás continuem controlando preços, o que reduziria concorrência. As ineficiências e a roubalheira podem ser disfarçadas com aumento dos preços. Sofre o povo, sofre a eficiência. Privatização à brasileira. 

5) O programa de desestatização (no caso venda de refinarias) reservou para a estatal Pegtrobrás as refinarias do Sudeste, região mais rica. O grosso e o mais atraente continuam estatais. A arrecadação prevista caiu de 18 para 10 bihões de dólares. Claro, vai sofrer a eficiência, vão sofrer programas sociais, o Brasil continuará no retrocesso. E as condições para um petrolão futuro continuam as mesmas das existentes quando o PT subiu ao poder em 2002.

Privatização em qualquer idioma da Terra significa transferir o bem estatal para a iniciativa privada. E, com isso, obter ganhos de eficiência, diminuir a perigosa ingerência do Estado na economia e, cm a economia melhorada, possibilitar melhor atendimento aos pobres. No Brasil, não. Privatização significa transferir a propriedade de estatais brasileiras para estatais de outros países, em especial às estatais chinesas. Essa privatização, que traz no bojo o aumento da influência do Partido Comunista Chinês sobre a economia brasileira, fará o PT dar cambalhotas de alegria.

Tem mais: a privatização vai ser pelas beiradas. O núcleo mais valioso continua nas mãos do Estado. É a autêntica privatização à brasileira, coisa nossa, não vista em nenhum país do mundo. Entre meus últimos artigo, estava o “Preocupa” que trata do caso. Este aqui poderia ser chamado “Alarma”. É preciso mudar o rumo. Já.


Bolo em camadas


Bolo em camadas

Péricles Capanema

Meu primeiro impulso foi pôr aí em cima o equivalente, mais expressivo, gâteau de couches e não bolo em camadas. Gâteau de couches nos remete a mais sabores e a formas mais bonitas, à pâtisserie (doceria, confeitaria) francesa, produtos que são verdadeiras obras de arte, pequenos andares de delícias de diferentes gostos.

A ideia de fundo é a de soma, adição de realidades harmônicas e complementares. Como metáfora, serve para quê? Para os mais variados fins, no meu caso para representar virtude, para muitos amarga e dura, a seriedade. O contrário, a seriedade é atitude que torna suave a vida. Seriedade é objetividade; vou procurar tê-la como inspiração e ser objetivo ao tratar dos dados divulgados pelo PISA mais recente. Não me esqueço, como os bolos, temos seriedade de uma camada, seriedade de duas, de várias camadas, a seriedade simples do porteiro e a seriedade elaborada do general.

De início, vamos considerar com seriedade simples (bolo de uma camada), sem desviar o olhar, os dados devastadores do PISA de 2018 (Programme for International Student Assessment – PISA, em inglês, Programa Internacional de Avaliação de Alunos), exame aplicado a cada três anos em 79 países a estudantes de até 15 anos; mais de 600 mil avaliados, dos quais 17,5 mil brasileiros. São dados controversos, mas apontam uma direção. O Brasil ficou na 66ª posição. Em leitura, 54ª, ciências, 67ª, em matemática, na 70ª. Na China, 16% dos estudantes estão no nível mais alto da disciplina, com raciocínio matemático considerado avançado. Entre os países da OCDE (Organização para a Cooperação e o Desenvolvimento), apenas 2,4% dos alunos chegam a esse patamar.

Outro ponto. Os colégios de elite brasileiros colocam o país na 5ª posição da leitura, ao lado da Estônia. O resultado das escolas públicas nesse quesito é o 65º. Escolas privadas de elite, o Brasil em ciências fica no 12º no mundo. Escola pública em ciências, Brasil no 71º. Privada de elite em matemática, 30º lugar. Púbica em matemática, 75º. 10% dos jovens do mundo conseguem diferenciar fato de opinião. No Brasil, total bem menor, 2%. Nenhum aluno das classes mais pobres conseguiu fazer tal distinção. Parte dos alunos das privadas de elite termina os estudos no Exterior e não volta ao Brasil.

O quadro desolador vem do que tem sido nossa educação fundamental há décadas. Se não for mudado, esqueçam o Brasil entre as nações mais prósperas da terra para as próximas décadas. Estamos dentro da sociedade do conhecimento. O começo do caminho ▬ não é o único, mas essencial ▬ para a prosperidade do Brasil é aumentar o padrão do ensino fundamental das escolas públicas. Vale tritrilhões de vezes mais que ficar tagarelando e papagaiando frases feitas como “resgatar a pobreza”, “pagar a dívida social”, “eliminar a desigualdade”, “distribuir renda”, e vai por aí afora. Pior ainda seria moldar o ensino fundamental segundo doutrinas demolidoras como as de Paulo Freire ou a ideologia de gênero. Acabaria de afundar.

Não vou ser conselheiro Acácio, temos grandes técnicos na área que sabem exatamente o que propor e fazer. O óbvio ululante é que nos últimos 50 anos o rumo foi frouxo e cheio de defeitos. Repito, se não for consertado o ensino fundamental, a rabeira será nosso destino permanente. Sei, boa instrução não basta para a prosperidade. Mas é essencial. E, quem nasceu pobre, via de regra, só tem uma oportunidade de crescer na vida; fazer, nos seus primeiros anos, um bom curso fundamental.

Vou deixar o bolo em uma camada, vamos para o bolo em duas camadas. De outro modo, colocar mais algumas questões no quadro. Por vezes com boas razões se criticam no Brasil as desigualdades gritantes, a infância desamparada, o uso que o crime organizado faz de crianças. Como diminui-los? Ao lado do ensino fundamental, base dele, faz falta a primeira educação familiar. O ambiente familiar é o mais importante para a formação do caráter e o florescimento do que a instrução fora de casa poderá proporcionar. O que acontece até os 5 anos marca fundo a vida toda. Se no Brasil faz muita falta a primeira educação familiar, é porque a família está falhando. E assim, quem a defende com unhas e dentes, luta por causa social de generalizado impacto na diminuição da pobreza. O economista professor Roberto Macedo, discorrendo sobre educação, em especial a infantil, ressaltou ponto de enorme importância: “Tive circunstâncias educacionais muito favoráveis, pois minha mãe deixou o magistério para cuidar dos seus oito filhos. Na época, famílias desse tamanho eram comuns. Ela levou todos à escola, e nossa casa era também uma escola, pois ela ensinava várias coisas, e cobrava desempenho escolar. Havia também muitos livros e até jornais diários, que atraíam nossa atenção. E jogos infantis, muita conversa com ela e entre irmãos, tudo isso estimulando nossa cabeça já na primeira infância. E, ainda, a interação com os filhos de famílias vizinhas, também ajudando no desenvolvimento intelectual e social

As duas primeiras camadas eram até certo ponto previsíveis. A terceira, acho, nesse bolo em três camadas, é que traz novidade. Relia partes do livro “Minha vida de menina” de Helena Morley (pseudônimo de Alice Dayrell Caldeira Brant) ▬ do qual Georges Bernanos certa vez comentou com o ministro Capanema: “obra genial, livro único, impossível de traduzir, um milagre” ▬ e topei com cena instrutiva de fins do século XIX em Diamantina: “Hoje tive o maior espanto de minha vida. Vovó, todos os sábados, manda um de meus irmãos ao Palácio, que é perto da Chácara, trocar uma nota em borruquês do Bispo. Põe tudo numa caixa de papelão e fica sentada na sala de jantar, à espera das pobres delas. A cada uma dá um borruquê novo de duzentos réis. São elas, Chichi Bombom, Frutuosa Pau-de-Sebo, Teresa Doida, Aninha Tico-Tico, Carlota Pistola, Teresa Buscapé, Eufrásia Boaventura, Maria Pipoca e siá Fortunata. [...] Eu sempre fico por perto ouvindo as queixas”.

Uma avó, com a neta por perto, recebe na sala mulheres pobres para dar esmola. Ambiente descontraído, acolhedor, simples, respeitoso, onde, imersas num ar difícil de definir, pretas, brancas, mulatas conversam, trocam opiniões e depois as pobres vão embora. Se o Brasil quer de fato um dia ser grande ▬ grande de grandeza cristã, a única que interessa ▬ e não apenas próspero, este ar difícil de definir não pode morrer. Digo mais, não pode definhar. Enfatizo: tem que se firmar, aperfeiçoar-se e conquistar espaços.

 É esse o ambiente do Brasil antigo, também percebido nas palavras do professor Macedo. Definha, infelizmente, está morrendo. Se desaparecer por inteiro, de nada vai adiantar estarmos na primeira fila do ensino fundamental. E concluo, para ser proveitosa, a análise da formação infanto-juvenil entre nós requer olhares de profundidade diferentes. Só então se apresentará apetitosa, atraente e nutritiva como um bolo em camadas.

segunda-feira, 16 de dezembro de 2019

Função social às avessas


Função social às avessas

Péricles Capanema

No Brasil, como em qualquer lugar do mundo, ramos de negócio existem às dezenas de milhares. De outro jeito, ninguém sabe quantos galhos seguram a árvore da atividade econômica. Bancos, postos de gasolina, armazéns, açougues, padarias, escolas, cervejarias. Nunca acaba. Quando a empresa produz pouco, vendas mirradas, vira galho seco, em geral afunda e quebra. Triste a falência, preocupante a recuperação judicial; contudo, são fatos corriqueiros, acontecem todos os dias. E a vida segue.

Corta. Vocês já ouviram falar de alguma firma que sofra desapropriação se for considerada improdutiva por órgão do governo? Produziu pouco? Governo em cima. Já escutaram, supermercado improdutivo, desapropriação nele? O boteco comercia pouca cachaça e salgadinhos? Vai ser desapropriado, onde já se viu. O banco tem empregados preguiçosos, produtividade pequena segundo índices do governo? Vai passar para outras mãos, estatais. Seus funcionários virarão barnabés e aí sim, a produtividade irá para as alturas. Nunca, né?

Para infelicidade social, temos segmento econômico no Brasil, só um, que, se você for considerado improdutivo, pode sofrer a punição da desapropriação, em linhas muito gerais logo que dê na telha dos donos do poder (deixo de lado aqui o lote urbano, tem algo longinquamente parecido) Para tal, índices foram aplicados fraudulentamente, agitações foram orquestradas, laudos fajutos foram feitos às pencas. Está no campo, é a novela macabra da reforma agrária, um dos tumores de estimação dos brasileiros. No caso de que vou tratar abaixo, destaca-se autarquia aparelhada para a perseguição ▬ o INCRA.

No conjunto, considerando tudo, o programa da reforma agrária no Brasil, velho de mais de 50 anos, autenticamente poderia ser titulado de a prática obsessiva e fanática da função social às avessas. Sempre deu com os burros n’água, sempre agrediu objetivos sociais, mas não tem importância, é tumor cancerígeno de estimação nosso, a gente tem xodó dele. Fôssemos objetivos, desapegados de retrocessos sociais, seria extinto; é exigência imperiosa da justiça social acabar com ele. Não só ajudaria a sociedade como um todo, facilitaria o combate à pobreza.

Em duas palavras, continua entre nós esse disparate renitente, que já foi abandonado pela maior parte dos países que algum dia entraram nessa fria. É jabuticaba nossa (dizem, sei lá se é verdade, jabuticaba só dá no Brasil). Tem apoiadores, promotores do atraso, por exemplo, em 22 de dezembro, Lula e Chico Buarque vão jogar futebol no campo do MST em Saquarema. Pedro Stédile certamente estará presente.

O programa da reforma agrária no Brasil sempre teve como base um fundamentalismo refratário aos dados da realidade. É clara opção preferencial pela atrofia. Com efeito, diminui a produtividade (baixíssima a produtividade nas áreas assentada), desperdiça dinheiro público (quando não é roubalheira descarada) que poderia minorar problemas sociais, traz insegurança jurídica, exaspera tensões sociais, favorece fuga de capitais do campo. Tal política, xodó da esquerda e do progressismo das sacristias, se não for desinfetada zelosamente com o confronto da realidade, assepsia permanentemente necessária para quem acha que ele ajuda os pobres, continuará a provocar tragédias pelas décadas na frente,  pobrezas, exclusões e regressões sociais.

Vou lembrar dois exemplos. o IPEA em relatório informou que até 2011 já haviam sido gastos 7,6 bilhões de dólares no programa. Até hoje? Não achei o número amazônico. Se essa montanha de dinheiro tivesse sido aplicada em programas sociais de verdade (escola, saúde, infraestrutura), muito melhor estaria a situação dos pobres e da economia no Brasil.
E temos ainda a considerar os gastos gigantescos com o INCRA, 30 superintendências, funcionários, viagens etc.

O site do INCRA informa quanto já foi gatunado [desapropriado] assim ao longo de mais de 50 anos. 87.953.588 milhões de hectares [879 mil km2], área muito maior que a Bahia e o Rio Grande do Sul somados, muito mais do que o agronegócio brasileiro usa para nos colocar na dianteira do mundo na agricultura e pecuária. Segundo dados de 2017, o Brasil utiliza 63.994.479 hectares para agricultura.

Vou continuar no site do INCRA e reproduzir aqui um objetivo da entidade: “em relação aos beneficiários, a atuação do Incra no campo é norteada pela promoção da igualdade de gênero”. É isso, a ideologia de gênero, combatida oficialmente, está colocada pelo INCRA como objetivo seu no campo.

Lembrei de forma passageira apenas alguns pontos, que a imprensa gosta de esquecer, mas agora divulgo trechos esparsos de artigo do advogado Paulo Márcio Dias Mello no Consultor Jurídico (8 de dezembro de 2019 – íntegra no site) que põe a nu a bagunça com que se tocam as coisas no Brasil. O título do trabalho já é evidência do descalabro “O INCRA não existe, é uma autarquia fantasma”. Continua o advogado: “o Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária não existe como autarquia federal, dotada de personalidade jurídica própria, há mais de 32 anos. O Incra foi criado pelo artigo 1º do Decreto-lei 1.110, de 1970 como entidade autárquica. Em 21 de outubro de 1987, o Instituto foi extinto pelo decreto-lei nº 2.363/1987, sendo criado, no seu lugar, outra autarquia, o Inter – Instituto Jurídico de Terras Rurais. O decreto-lei 2.363/1987 encontrava-se em tramitação no Congresso Nacional, quando foi promulgada a Constituição de 1988, que atribuiu competência diretamente à União, em seu artigo 184, para ‘desapropriar por interesse social, para fins de reforma agrária’. A regra do §1º, I, do art. 25 do Ato das Disposições Constitucionais Transitórias: § 1º Os decretos-lei em tramitação no Congresso Nacional e por este não apreciados até a promulgação da Constituição terão seus efeitos regulados da seguinte forma: I - se editados até 2 de setembro de 1988, serão apreciados pelo Congresso Nacional no prazo de até cento e oitenta dias a contar da promulgação da Constituição; II - decorrido o prazo definido no inciso anterior, e não havendo apreciação, os decretos-lei ali mencionados serão considerados rejeitados’. Assim, o decreto-lei nº 2.363/1987 foi rejeitado expressamente pelo Congresso Nacional pelo Decreto Legislativo nº 2/1989. O Decreto Legislativo teve, portanto, dois efeitos: confirmar a extinção do Incra e promover a extinção do Inter. Os atos praticados pelo ‘Instituto’ durante todos esses anos são eivados de vício. O INCRA é entidade fantasma”.

Alguém imaginava essa? Cabe aos especialistas do Direito Constitucional e do Direito Administrativo resolver o caso que bem podia acabar com fantasma que assombra o Brasil. Menos um. E com ele a esdrúxula função social às avessas com a qual convivemos há tantas décadas.


domingo, 15 de dezembro de 2019

Migração redentora


Migração redentora

Péricles Capanema

Sempre me impressionaram as soltas de pombos-correio. Voam em círculos largos, duas ou três voltas e, súbito, como que acabada a indecisão, tomam rumo, flechas no retorno ao pombal. Por que os círculos ascensionais das aves? Não sabem que curso escolher? De qualquer modo, fazem imagem linda das divagações do espírito. Umas, perda de tempo, não se alteiam como eles. Diferente outras, sobem, volteiam, mas, bem colocadas, antecedem de pouco a fixação do objetivo. Por vezes de uma vida toda, como os voos dos pombos-correio, não raro linhas de mil quilômetros até os columbários.

Permito-me divagar um pouco sobre migrações, mas tenho norte ▬ hoje pode surpreender. Migrações lembram caminhadas, jornadas, marchas, percurso, trajetória. E depois, termo, parada, chegada, êxito, triunfo. Ou fracassos e decepções.

Em incontáveis casos, repletas de simbolismos, as migrações brilham pelos séculos com enorme poder evocativo. Rememoro duas de raiz bíblica. A migração dos judeus, os filhos de Jacó, para o Egito, precedida da venda de José como escravo pelos irmãos a mercadores ismaelitas. Pretexto do crime dos irmãos: José era um sonhador. Aliás, não custa lembrar, pela vida afora, muitos de nós, “sonhadores”, somos como José, vendidos por quem menos se espera, na busca de vantagens passageiras.

Os anos passaram, José, o escravo fracassado e vendido, teve carreira fulgurante. E nos deixou grande lição de perdão. Aos irmãos envergonhados, as palavras doces do rebento rejeitado, pelas mãos de Deus alçado a ministro do faraó, mandachuva de um império, que apenas diz: “Eu sou José, vosso irmão, a quem vendestes para o Egito”. Depois de 400 anos, outra migração, os judeus estão de volta, guiados por Moisés, vagueiam quarenta anos pelo deserto do Sinai, no retorno à terra prometida, Canaã.

Outro exemplo, migrou também o filho pródigo da casa paterna, levando a herança rica, que dilapidou na farra. E depois, pobre, arrependido, fez a jornada de volta. “Pai, pequei contra o céu e contra ti. Já não sou digno de ser chamado teu filho”.

Tantas outras migrações e das mais variadas naturezas. Vou tratar de uma delas, das mentalidades, no seio da opinião pública e no mundo oficial. Acontece no Brasil e é migração que tem potencialidades para ser redentora.

Vamos ao ponto. Em 17 de novembro de 1889 o governo provisório expulsou a Família Imperial do Brasil. Em 21 de dezembro o decreto de banimento foi publicado. Dom Pedro II e família não podiam voltar, não podiam os membros da Família Imperial possuir bens imóveis aqui; se tivessem estavam obrigados a vendê-los em dois anos, extintas ficavam as dotações oficiais. Começava tentativa de varrê-los da história brasileira. Era uma forma de passar borracha no passado, recurso de legitimação da república. Com a consequente batalha em torno de símbolos, imagens e comemorações se iniciava uma nova era que proclamava e desejava ser inequívoca ruptura com a anterior.

Não aconteceu e não funcionou. De fato, pouco depois, espontaneamente, o Brasil de alto a baxo se recusou a tomar uma atitude jacobina e deu início a movimento oposto, a reaproximação com a Família Imperial. Multiplicavam-se em escolas, rodovias, edifícios, empresas, os nomes de Pedro II, Leopoldina, Princesa Isabel. Cidades eram memória viva, Teresópolis, Petrópolis, Joinville. E começavam a ser apresentados na Câmara um atrás do outro projetos para cancelar o banimento da Família Imperial, o primeiro dos quais em 5 de agosto de 1891, menos de dois anos depois do golpe de 15 de novembro, da lavra dos deputados Caetano e Albuquerque e Anfilófio de Carvalho. Não prosperou, claro.

Um marco dessa migração (reencontro, outro nome), pelo impacto enorme, merece recordação especial: o retorno ao Brasil do barão do Rio Branco (1845 – 1912) em 1º de dezembro de 1902, depois de 26 anos no Exterior para assumir o ministério das Relações Exteriores. Fruto autêntico do ambiente social e político do 2º Reinado, permaneceu na chefia da diplomacia brasileira ao longo de quatro presidentes ▬ Rodrigues Alves, Afonso Pena, Nilo Peçanha e Hermes da Fonseca. Faleceu no cargo, marcou direção até hoje prevalente.

Rio Branco triunfara na Europa e nos Estados Unidos em questões delicadas de fronteiras com consagradoras manifestações de inteligência, erudição e tato. Coberto de louros, convidado para o ministério, foi apoteótica e reveladora sua chegada no Rio de Janeiro. O navio que o trouxe entrou no porto rodeado de embarcações. Ao meio dia saltou em terra, onde multidão enorme o esperava. Fisionomia serena e senhorial, bigode forte, presença e domínio de cena impressionante, lembrava tanta coisa, os modos e o jeito de Bismarck, recordava em especial o Império e seus homens públicos, evocava a Família Imperial, revivia um mundo que deixara saudades e que se recusava a morrer. Ali era seu mais qualificado representante.

Segundo Álvaro Lins, foi assim que o povo e o mundo oficial celebraram Rio Branco: “O percurso pelas ruas da cidade veio a constituir uma cena espetacular. Do préstito faziam parte representações de todas as classes e entidades sociais: do Governo, da Câmara e do Senado, do Exército, da Marinha, do corpo diplomático, do corpo consular, das escolas militares, dos colégios oficiais e particulares, de associações religiosas, de sociedades culturais e literárias, de instituições científicas, de clubes mundanos, das escolas de Direito, Medicina e Engenharia, do comércio, da indústria, das repartições públicas de diversos ministérios, dos veteranos da guerra do Paraguai. Clarins e bandas de música anunciavam a sua passagem. Por toda parte se via o seu retrato. As ruas estavam embandeiradas, num espetáculo festivo de cores e dísticos, e das sacadas atiravam-lhe flores. Coberta de flores também estava, desde a véspera, a estátua do Visconde do Rio-Branco.”. Este mundo estava banido?

O nome, José Maria da Silva Paranhos Júnior. Poderia ser chamado de dr. José Maria, dr. José, seu Juca, o Paranhos, Juquinha, Zeca Paranhos, Juninho. Nada pegaria. Era o barão ou Rio Branco. Firmava Rio Branco, o jamegão valia; não dava bola para a supressão do título, lavra da república, nem para a obrigação de utilizar seu nome de registro. Desinibidamente usou o título supresso e nunca escondeu as convicções monarquistas. Estava banido o Império? Estava banida a Família Imperial? Nada mais artificial, brutal e postiço.

Por que deixou a Europa, depois de 26 anos lá?  O governo necessitava dele não apenas para negociações diplomáticas importantes. Precisava de sua irradiação para se cobrir de respeitabilidade. Punha à frente da pasta do Exterior e como figura de proa dos homens públicos um garantidor da ordem, um expoente da cultura, modelo de eficiência e senso prático na gestão dos negócios estrangeiros. Elevava assim sua estatura nas Américas e até no mundo. O retrocesso republicano prejudicava, era urgente um avanço, imprescindível acabar com o descompasso entre o Brasil e o mundo civilizado. Para tudo isso Rio Branco servia como uma luva.

No fundo do palco cuja figura principal era o barão, desenhava-se a figura da Família Imperial, sem cuja ação dificilmente se formariam figuras públicas como a que dominava a cena pública nacional. Ela voltava aos poucos, reconquistava espaços. O reencontro se consolidava, evaporava-se o plano de confiná-la, esquecida, na Europa.

Em dezembro de 1919, depois da derrota de numerosos projetos semelhantes extinguindo o banimento, o deputado mineiro Francisco Valadares (aparentado com o senador Benedito Valadares), mais uma vez, propôs o fim do banimento. Já estava escandaloso o caso. O Congresso aprovou-o. Em 3 de setembro de 1920, foi assinado no Catete o decreto que revogava o banimento. A Família Imperial podia voltar; era véspera do centenário da Independência, realizada por um de seus membros.

Voltou, ela que nunca deveria ter saído. Houve gradual reinserção de figuras da Família Imperial na sociedade brasileira. Acelerou-se a trajetória da Família Imperial para o centro da vida nacional e continuou a derrubada das barreiras artificiais entre ela e a opinião nacional.

Um salto sobre muitos acontecimentos. Hoje temos dom Bertrand homem público, dom Luiz Philippe homem público, dom Rafael começando a se firmar: “Fomos ensinados desde pequenos a ser vistos como exemplos”. O presidente Bolsonaro declara a dom Luiz Philippe: “Você deveria ter sido meu vice, e não esse Mourão aí”. E o ministro da Educação escreve textos assim: “Não estou defendendo que voltemos à Monarquia, mas o que, diabos, estamos comemorando hoje? Há 130 anos foi cometida uma infâmia contra um patriota, honesto, iluminado, considerado um dos melhores gestores e governantes da História”. E ainda: “O Império teve seus dois principais atos assinados por mulheres educadas, inteligentes e honestas. Elas nos governaram bem antes de Dilma. A Lei Áurea e nossa Independência foram assinadas respectivamente pela Princesa Isabel e por Dona Leopoldina”.

Chamo a atenção para ponto quase nunca enfatizado: a naturalidade generalizada com tal situação, da qual dei poucos exemplos acima. Todo mundo acha normal fatos assim, se tirarmos a minoria jacobina, petrificada em preconceitos gastos. Razão? Não são raios em sol sereno, inserem-se naturalmente dentro de processo já velho de mais de um século, que vem ganhando volume, com o qual todos convivemos. Dois movimentos: a Família Imperial caminhou, em longa marcha, para o centro da vida nacional; o segundo, o Brasil andou, décadas afora, em direção a ela. Penso, sintoma da migração, um plebiscito como o de 1993, causa bem apresentada e propaganda bem conduzida, daria muito mais que os 10% da época.

Até onde nos conduzirão as duas migrações? Não sei, ninguém sabe. Mas sei, enquanto a Família Imperial representar honestidade, moralidade, simplicidade, esplendor, harmonia, em suma, ser esperança de garantidora de uma sociedade estaqueada na família e promovendo incontáveis plenitudes de natureza vária de que o Brasil necessita e pode abrigar, muito dificilmente terá fim tal migração. São os 40 anos no Sinai. E estou certo, terá sido migração redentora. Que são Pedro de Alcântara, padroeiro da Família Imperial, lhe ajude e ajude a todos nós nessa caminhada, que é pelo bem nacional.