domingo, 30 de junho de 2019

Quem avisa, amigo é


Quem avisa, amigo é

Péricles Capanema

A Wahrton Business School da Universidade da Pensilvânia, fundada em 1881, é tida como a escola de negócios mais antiga do mundo. Seu prestígio não vem só daí; ainda hoje é dos mais importantes centros mundiais de ensino de negócios, buscado por alunos brilhantes do mundo inteiro. Da lista de 400 bilionários de 2018 da revista Forbes 19 tinham estudado na Wharton, 13 em Yale, 12 em Stanford, 12 na Southern Califórnia e 10 em Harvard. Um dos antigos alunos da Wharton é Donald Trump.

Seu reitor Geoffrey Garrett, no posto desde 2014, por óbvio é figura luminar do mundo acadêmico e empresarial. Estando no Brasil por uns dias ao Estadão fez declarações de enorme importância: “Sempre fomos conhecidos como uma das melhores escolas de finanças do mundo. Agora temos uma veia de big data”.

Finanças e big data são as atuais duas linhas principais da Wharton. Big data, sabe-se, são zilhões de informação trabalhados com tecnologia de ponta. Permitem entrar nos gostos, costumes, inclinações, posições, dados sensíveis do cidadão privado e a orientação de governos. Poderosíssimo instrumento de controle, virou objeto de preocupação de governos e instituições de estudo. A liberdade do particular e a soberania do Estado estão em jogo.

Geoffrey Garrett pôs o dedo na ferida. Chamou a atenção para as presentes relações entre Estados Unidos e China: “Não estamos vivendo uma guerra de tarifas. Vivemos uma batalha global por inovação. Estamos hoje desenvolvendo tecnologias que têm uma forte implicação de segurança nacional ▬ algo que não nos importou muito nos últimos 30 anos, justamente por conta desse otimismo global”.

Ou, por outra, essa guerra comercial não envolve apenas comércio. Vai além. Segurança nacional tem relação próxima com independência, soberania, interesses estratégicos. No verso da moeda, com dependência, protetorado, colonização. E não so dos Estados Unidos. Continua Geoffrey Garret: “Há um ponto sério que pouca gente discute. Xi Jinping, presidente chinês, já disse a toda empresa privada que, se o governo chinês quiser ter acesso a dados dos usuários, ele deverá ser concedido”.

De outro modo, o governo chinês (e o Partido Comunista Chinês, para ser mais claro) aqui têm franqueza brutal, para não deixar dúvida. Se os dados forem requeridos, é preciso entregá-los. Qualquer dado, de qualquer usuário de empresas privadas chinesas, potencialmente pertence ao governo chinês. Usará deles, se necessário.

Tal declaração, dada em solo brasileira, tem enorme relevância para o Brasil e para cada um de seus habitantes. A empresa chinesa Huawei, com apoio de parlamentares até de direita, vem tentando instalar no Brasil gigantescos equipamentos de estrutura de comunicações e vigilância. Obterá dados de praticamente todos os brasileiros. Estarão à disposição do governo chinês, é o presidente da China que garante.

Autoridades do governo brasileiro, entre as quais o vice-presidente general Hamilton Mourão, declararam que o Brasil não impedirá a empresa chinesa de operar e implantar a tecnologia 5G: “A Huawei vem sendo acusada de repassar os dados que ela tem ao governo chinês. Conversei com ele [Ren Zhengfei, presidente-executivo da Huawei] que tem que criar um clima de confiança. Enquanto houver esse clima de confiança não tem problema nenhum. O Brasil não tem nenhum plano (de restringir as atividades da empresa)”. O general Hamilton Mourão ressaltou que só quatro empresas no mundo dominam a tecnologia do 5G, duas finlandesas e duas chinesas, a Huawei entre elas.

Aqui está a exigência brasileira: manter cima de confiança. Com clima de confiança, a Huawei pode agir à vontade. Haverá leilão em 2020 para a frequência 5G.

Os Estados Unidos acham que clima de confiança é insuficiente. Não querem correr riscos e para tal ouvem especialistas. E se os argumentos são convincentes, seguem as recomendações. Na prática, estão temerosos, tomaram medidas. Colocaram a empresa na lista negra do governo americano por ameaçar a segurança dos Estados Unidos, o que a impedirá de fazer negócios com corporações norte-americanas.

Artigo circunstanciado do Financial Times de 9 de junho último assinado por três correspondentes (Jude Webber – Cidade do México, Andres Schipani – São Paulo, Benedict Mander – Buenos Aires) mostra que o problema é muito maior. Brasil, Argentina, Chile, México e Cuba não pretendem tomar medidas contra a Huawei. A situação ficará mais cômoda para a empresa chinesa se a chapa de esquerda Alberto Hernández – Cristina Kirchner vencer as eleições em 27 de outubro.

O estudo dos três correspondentes é longo e bem fundamentado. Não tenho espaço para resumi-lo aqui. Só transcrevo declarações do chanceler de Cuba, Bruno Rodriguez Parrilla: “Temos laços comerciais tradicionais com a Huawei e Cuba tem confiança inteira na tecnologia chinesa e nessa empresa em particular”. Os Estados Unidos estão perdendo “a guerra tecnológica”.

A posição brasileira tem relação com as vendas de produtos agrícolas para a China. Tem ainda relação com o desejo de ter investimentos chineses no Brasil (na prática, de estatais chinesas). E ainda com que a tecnologia chinesa é a mais avançada e mais barata,  afirmam os três jornalistas do Financial Times. Ninguém se iluda, já é o garrote chinês apertando nosso pescoço.

O recente acordo da União Europeia como Mercosul, se bem implementado, levará ar aos pulmões do Brasil. Ficaremos um pouco menos dependentes e um pouco mais senhores de nossa soberania, cada vez mais formal e menos real, se trilharmos caminho em que já andamos um tanto. É notícia alvissareira num quadro que preocupa há muito tempo e começa a alarmar. A advertência de Geoffrey Garrett foi de amigo, ficou credor de nossa gratidão. Quem avisa, amigo é.

sexta-feira, 28 de junho de 2019

Lamparina na praça de máquinas


Lamparina na praça de máquinas

Péricles Capanema

Título sugestivo escolheu Roberto Campos para suas memórias: a lanterna na popa. A proa fende as águas da vida, é o presente. Parte de trás, a popa, é o passado. O texto do memorialista, a lanterna, o iluminava.

O movimento revolucionário pode ser comparado a um grande navio. Singra os mares da história humana. Tem parte pouco visitada, a praça de máquinas, onde estão seus motores, aquilo que o impulsiona. Vou entrar lá com uma lamparina, ali mostrar certos desvãos.

Tudo estava nas mãos do comunismo. Em 1917 o comunismo mais radical, sob o comando de Lênin, por meio de golpe de Estado, conquistou um império gigantesco, a Rússia. Implantou rápida e brutalmente ditadura total, governou balizado por concepções totalitárias, dominou o Estado, massacrou a oposição; enfim, o Partido Comunista tinha tudo nas mãos. Caminho desimpedido, seu objetivo, a sociedade sem Estado dos livres e iguais poderia ser implantado com celeridade, se necessário a ferro e fogo. E dali, pelo exemplo e pelos aparatos da expansão imperialista (em especial a Internacional Comunista) logo conquistaria o mundo encantado com as maravilhas da sociedade comunista ▬ os amanhãs que cantam. Havia enorme esperança no poder redentor do Estado. A superpotência comunista, o poder militar, o financiamento do comunismo no Ocidente de fato ajudaram o proselitismo e a expansão do comunismo. É realidade conhecida, a cara da moeda.

Obstáculos. Vou pôr em destaque agora o outro lado, a coroa da moeda. O mundo logo reagiu horrorizado aos espetáculos dantescos do bolchevismo. O Partido Comunista registrou o baque, não conseguia ganhar eleições em boa parte por causa da realidade no país dos sovietes. O horror da situação na Rússia cristalizou fortíssimo sentimento anticomunista e possibilitou a formação de movimentos dessa orientação no mundo inteiro, muitos dos quais tomaram o poder. Os próprios socialistas, ainda que concluindo alianças eleitorais, marcavam distâncias. Pior. O homem novo da utopia comunista não estava se formando na Rússia soviética. A liberação legal dos costumes ocorrida nos primeiros anos que deu origem a pavorosa desagregação social, foi trocada pelo enrijecimento da legislação, sob Stalin, a ponto de certas partes da legislação civil, por exemplo, as relativas ao divórcio, serem mais restritivas que disposições semelhantes vigentes em países democráticos. De outro modo, a liberação moral prometida pela doutrina era limitada pela prática, pois Stalin precisava da disciplina social para industrializar a Rússia ▬ praticava-se um capitalismo de Estado. Mais ainda. Lá o comunismo não transformava fundo as mentalidades. O russo comum era parecido com o russo sob o tsarismo.

Tudo estava nas mãos do comunismo? O Estado estava nas suas mãos, as instituições, ensino, polícia, empregos sob inteiro controle. Contudo, não o interior das pessoas, suas crenças, aspirações, gostos, costumes. Saltava à vista para os dirigentes, na política e nas esferas intelectuais, não bastava ter o Estado nas mãos para acelerar a criação do homem novo comunista. Mais ainda, era pouco ter o Estado nas mãos. E, olhando o Ocidente, era pavoroso o exemplo de sociedade comunista (tirania e miséria) que o comunismo russo lhe dava. Dele fugia o povo. Em curto, havia um impasse e a pura doutrina marxista, determinista, e tudo fazendo derivar de realidades econômicas, era incapaz de apresentar a solução.

Saídas. De passagem, em artigo anterior, “Dominação e emancipação”, postado no meu blogue (periclescapanema.blogspot.com) em 26 de junho, prometi voltar a tratar da Escola de Frankfurt. Cumpro aqui parcialmente a promessa, espero ainda discorrer mais longamente do tema. Várias foram as correntes e pensadores comunistas de partido e mesmo anarquistas que procuraram saídas para o impasse acima referido. Destacaram-se no cipoal das opiniões em choque, duas delas, o gramscismo e as doutrinas cuja origem de maneira um pouco simplificada podemos colocar na Escola de Frankfurt. É o que hoje via de regra se qualifica de forma abrangente de marxismo cultural. Antônio Gramsci (1891-1937) mostrou a importância de conquistar a sociedade civil (uma grande marcha no interior das famílias, das igrejas, do ensino, dos meios de divulgação) antes de busca o poder no Estado, etapa posterior. E Escola de Frankfurt abriu a mente de milhões de pessoas nas correntes comunistas abrigadas nos PCs ou em torno dele para a importância da destruição da família tradicional, da generalização da moral libertária, da criação de novas mentalidades e costumes, da valorização do instinto com a consequente desvalorização da razão, antes de visar obsessivamente o poder político. Em resumo, é preciso empapar sobretudo o interior das personalidades e a sociedade inteira com novos costumes e novas concepções de caráter libertário e desagregador. O poder político figura apenas como um dado a mais. Entre seus mais conhecidos representantes são mais conhecidos Herbert Marcuse (1898-1979), Max Horkheimer (1895-1973), Theodor Adorno (1903-1965), Walter Benjamin (1892-1940), Erich Fromm (1900-1980).

Um exemplo. Daniel Cohn-Bendit, Dany Le Rouge, foi ícone da revolução de maio de 68 na França. A evolução ao longo de 50 anos do que então ele representava desembocou no que hoje chamamos de marxismo cultural. Em maio de 1968 concedeu ele entrevista ao Magazine littéraire da qual transcrevo extratos. “Se quiser, sou marxista, como Bakunin. Sou muito antileninista, contra o centralismo democrático. Existem três temas importantes: a luta contra a repressão democrática, contra o autoritarismo e a hierarquia. Estes três fenômenos se encontram no Leste e no Oeste. Sou contra a sociedade soviética, sou contra a sociedade capitalista. A classe operária russa não tem nenhum poder de decisão. Não me interessa dialogar com o mito Mao. O estalinismo é a forma absoluta de repressão, uma sociedade burocratizada. Lutamos contra a repressão sexual. Marcuse na sua crítica da sociedade capitalista e na sua recusa da sociedade dita socialista é para nós um ponto de apoio”.

De forma muito resumida, é o que o prof. Plinio Corrêa de Oliveira no livro “Revolução e Contra-Revolução” intitula 4ª Revolução (sucedânea da 1ª Revolução, a Revolução Protestante, da 2ª Revolução, a Revolução Francesa, e da 3ª Revolução, a Revolução Comunista). E os temas levantados por tais correntes têm relação próxima com o que o pensador católico chama de revolução nas tendências, que em seu ensaio embasa a revolução nas ideias e depois nos fatos ▬ as três profundidades da Revolução.

A conversa desfiada


A conversa desfiada

Péricles Capanema

Provocada pelo clima de Brasília, despenca sobre nós, sem fim, a saraivada do escarcéu, desgoverno, desorientação, boçalidade e baixaria. Debaixo do granizo, difícil perceber o impulso decisivo de toda boa ação política, o agudo senso do bem comum.

Em outra comparação, a vida pública brasileira já de há décadas vem rolando em precipícios dos quais não se vê o fundo. A previsão de Ulisses Guimarães tem se verificado doloridamente, foi mais ou menos assim: “Está achando ruim essa composição do Congresso? Então espera a próxima, vai ser pior”. Imaginem, a atual já apavora, a pífia consolação é que a próxima virá pior. Toda profissão depende da qualidade de seus membros. Com tais atores, a peça não vai ter sucesso. Mas não vou jogar tudo no cangote dos políticos no Planalto Central. Fomos nós, os eleitores, que os mandamos para lá.

Não pretendo prescrever panaceias para tal situação. Faço outra coisa, da remedama necessária, tiro do estoque e ponho na vitrine só um vidrinho, cujo recheio tanto serve para a vida pública quanto para a particular. Assim, não abandono inteiramente a matéria, mas trago à baila modesta contribuição para a solução do problema, útil igualmente para a vida de todos os dias de qualquer brasileiro.

Passo a desfiar o assunto. Em política, quem sabe conversar, já tem meio caminho andado. E dou o primeiro passo com frase conhecida, política é conversa, o resto é conversa fiada, da lavra, parece, de Otávio Mangabeira. Política e tanta coisa mais é conversa, o resto é conversa fiada. Número enorme de atividades humanas descansa na conversa.

O começo é ouvir. A língua faz muita gente surda. Nada escuta, tomada pelo gosto da parolagem compulsiva e oca; quem muito fala, muito erra e muito enfada. Ouvir supõe interesse, paciência, compreensão. Benevolência. As duas primeiras estacas, interesse e paciência, seguram o andar superior, a compreensão, entender até o fundo e em todos os matizes o que está dizendo ou está querendo expor o outro. Se queres ser bom juiz, ouve o que cada um diz.

Qualquer um, qualquer outro, até os mais simples. O interesse no pequeno é estrada para entender o grande. “Aperfeiçoa-te na arte de escutar, só quem ouviu o rio pode ouvir o mar”, advertência de Altino Caixeta de Castro, o Leão de Formosa, bom poeta do Triângulo Mineiro. Nelson Rodrigues marcou o Brasil e até hoje não foi esquecido (morreu em 1980) em especial porque entre outras qualidades sabia escutar: “Posso não ter outras virtudes, e realmente não as tenho. Mas sei escutar. Direi, com a maior e mais deslavada imodéstia, que sou um maravilhoso ouvinte. O homem precisa ouvir mais do que ver. Qualquer conversa me fascina [...]. E, se duas pessoas se falam, a minha vontade é parar e ficar escutando. Uma simples frase, ainda que pouco inteligente, tem a sua melodia irresistível”.

Sentir as ocasiões dos silêncios, modular a ênfase, o timbre da voz, ter maestria nas pausas são tão ou mais eloquentes que a o impacto da palavra. Fala o olhar, o gesto fala, a atitude fala, pode valer mil palavras o sorriso. O bocejo ou um gesto brusco tantas vezes cortam mais que refutações veementes. A presença, enfim. Existem presenças estimuladoras, presenças sabotadoras, presenças opacas. Dizia-se do príncipe de Metternich que a conversa dele fazia os interlocutores se sentirem mais inteligentes.

Deixei o miolo para o fim. O anterior ajudava a realçar o principal, o conteúdo. Como enriquecê-lo? Alguns recursos, observação, explicitação das impressões, leituras, bem como, sob outro aspecto, nas ocasiões adequadas, formação sistemática e estudos. Tudo isso enobrecido pelo caráter. Aí a pessoa tem muita coisa a dizer e é útil a todos a disposição de comunicá-la.

Desfio o assunto um pouco mais. A vida política tem aspecto pouco comentado, a exemplaridade. O rei, sob tantos aspectos o mais importante político de uma nação, é naturalmente modelo para o povo, objeto de sua atenção, aprendizado e entretenimento. Basta ver a atenção que provoca a rainha Elisabeth II. O político, a seu modo e proporção, é um pequeno rei. Tem também o dever da exemplaridade. E saber conversar bem o ajudaria a cumprir tal missão.

quarta-feira, 26 de junho de 2019

Dominação e emancipação


Dominação e emancipação

Péricles Capanema

Amigos me solicitaram, escrevesse de novo sobre o chamado marxismo cultural ▬ de momento tão relevante e na moda em decisivos meios de esquerda e na direita ▬ e, de forma congruente, pusesse no texto informações pertinentes à Escola de Frankfurt, atemorizador negotium perambulans in tenebris para tantos e com bons motivos. Apenas como informação provavelmente inócua, o artigo anterior “Esclarecimentos sobre o marxismo cultural”, está em meu blog (periclescapanema.blogspot.com) desde 25 de fevereiro último.

Certo. Obediente, volto ao assunto. De passagem, o hoje denominado marxismo cultural foi também chamado de marxismo ocidental, aqui e ali é qualificado de Teoria Crítica, marxismo da Teoria Crítica, um dos fundamentos doutrinários da revolução cultural. Nem faz falta realçar a importância da revolução cultural (e a consequente necessidade de estudar doutrinas e métodos seus e como a eles fazer frente).

Para cortar caminho, deixar claro o desatino da escola, embarafusto antes por atalho pouco trilhado, pinceladas rápidas sobre dominação e emancipação, duas das obsessões da referida escola. Seus mais conhecidos representantes blasonavam (não custa lembrar, o marco inicial da escola poderia ser cravado em 1923, estamos em sua terceira e quarta geração) o ideal de extinguir a dominação e levar até limites ainda impensados a emancipação humana. E continuam a alardeá-lo. Não custa lembrar por cima, cada vez que líderes de orientação igual ou parecida afirmavam aplicar o marxismo à sociedade, na prática levavam a dominação e sufocavam a emancipação a extremos delirantes. A Coreia do Norte está aí, Cuba que o diga, a Venezuela sofre efeitos dantescos dos partidários da emancipação.

Sempre é bom lutar contra a dominação? Em todas as situações deve ser buscada a emancipação? Dominação vem de dominus, senhor. Dominação é o ato próprio do senhor. Se é má a condição de senhor, maus serão seus atos. Emancipação, o que é? Emancipação igualmente tem origem latina (mancipium, qualidade do proprietário). Emancipar é extinguir a tutela do proprietário sobre outro ser.

Acontece que é boa e nobre a condição de senhor. E assim, seus atos são bons. E são bons e nobres a condição de súdito e o ato de obedecer. Censuráveis, excessos e carências em ambos os casos, senhor e súdito.

Com efeito, a autoridade existe para o bem do súdito. Removê-la em determinadas circunstâncias lesa o inferior. De forma análoga, a emancipação prematura prejudica o emancipado. Enquanto dura em condições adequadas, favorece o tutelado. Retirar o filho menor da tutela do pai, emancipá-lo antes da hora, compromete presente e futuro. Mais ainda, a autoridade e a dependência prolongam bons efeitos vida afora, perfumam-na. Anos atrás, conversei com prima distante, três filhos criados, casada com advogado rico em Belo Horizonte. Aparentemente tudo ia bem. Uma queixa ia e vinha, a morte da mãe anos antes, fazia pouco o pai. Fechava e abria a mão direita. “Me sinto um cachorro sem dono”, espetou o dedo.

Em suma, é destruidor para o desenvolvimento pessoal arrebentar todas as formas de dominação e promover a desenfreada emancipação. Que o digam em lamentos lancinantes algumas regiões da pobre e devastada África. Aqui rui nas bases o edifício da Escola de Frankfurt, verdadeira Torre de Babel de incontáveis correntes de esquerda, laboriosamente edificado ao longo dos anos.

Em boa hora para a esquerda (péssima para nós) brotou a Escola de Frankfurt. Abriu-lhe horizontes, pôs em evidência matérias imprescindíveis que a doutrina marxista empurrava para o canto ou negava na bruta; enfim, fincou estacas doutrinárias a uma ação revolucionária de maior profundidade que latejava por se expandir.

Movimento intelectual, sobretudo filosófica e sociológica, passou longe do grande público, o que não significa que teve pouca importância. Lembro a propósito, cinco camadas envolvem a Terra: troposfera, estratosfera, mesosfera, termosfera e exosfera. Existem fenômenos nas quatro camadas superiores, que influenciam a troposfera, ainda que desconhecidos de nós nela imersos. Assim na sociedade humana. A Escola de Frankfurt influenciou a vida acadêmica e os estratos intelectualizados dos movimentos revolucionários no mundo inteiro. E daí seus conceitos embeberam meios de divulgação, a política, outros ambientes intelectualizados e, finalmente, a sociedade em geral. Apenas uma pequena ilustração, o maior guru do maio de 1968 e das agitações de Berkeley, um pouco antes, foi Herbert Marcuse (1898-1979), dos principais representantes da referida escola.

O marxismo, materialista, determinista e evolucionista procura explicar toda a realidade pela economia, de outro modo, pelas forças de produção. Afirmei no artigo acima mencionado: “Segundo o marxismo, o determinante na história é a economia. E na economia os meios de produção, [...] base das relações de produção. As forças produtivas e as relações de produção dariam origem aos modos de produção. Existem sete modos de produção: primitivo, asiático, escravagista, feudal, capitalista, socialista e comunista. Um leva ao outro. Temos aqui a infraestrutura. A superestrutura são as ideias e instituições (entre elas, o Estado) que justificariam e garantiriam os modos de produção. O socialismo nasceria apenas depois de a sociedade capitalista estar bem desenvolvida. Por sua vez, o comunismo só depois do desenvolvimento do socialismo. Para o momento, o importante é o determinismo da doutrina marxista. Em doutrina, por ser determinista, desvaloriza o ato volitivo e relativiza por inteiro o bom, o mau, o belo, o feio, o justo e o injusto, colocados na superestrutura, dependentes das relações de produção. Até a ação política e o proselitismo. Na prática, os partidos comunistas nunca agiram segundo a pura doutrina marxista. Não foram deterministas, esperavam da ação partidária a aceleração do dia em que surgisse o homem novo sonhado pela utopia.”

Antes, tínhamos o marxismo focado em fatores econômicos. Não só deformava, limitava o horizonte. A Escola de Frankfurt propôs a revolução não só na sociedade, mas no interior do homem, privilegiou instintos, advertiu contra os perigos da razão [em especial denunciou a razão instrumental, instrumento favorecedor da sociedade capitalista em suas digressões]. Propugnou a liberação moral, como atividade emancipadora. Enfatizou o papel central dos hábitos, das mentalidades, das ideias. Enfim, do que se chamou a cultura e não apenas do econômico. Daí ser titulada de marxismo cultural. Era marxismo ainda? Nas bases, não. Mas era doutrina profundamente revolucionária, que servia como luva para o avanço do comunismo no interior do homem e na sociedade. Voltarei ao tema.