domingo, 31 de agosto de 2014

A caça ao odiento polarizador nos Estados Unidos


A caça ao odiento polarizador nos Estados Unidos

Péricles Capanema

Vai mar alto o ataque tendencioso à polarização nos Estados Unidos. Não só lá, aliás. Polarização virou palavra-talismã, carregada de radiação; ardilosamente utilizada, bomba atômica para eliminar o adversário, chicoteado como odiento polarizador. Meu foco, as tensões autênticas, vivas rejeições à decadência, tantas vezes no noticiário qualificadas com isenção aparente de polarizadoras. Posições assim, bem administradas, inibem a fragmentação, estimulam restaurações e atiçam os Estados Unidos no rumo direito. Friso o perigo: tem um montão de investidas contra a polarização, cujo resultado é abrir o estradão para políticas girondinas debilitadoras da reatividade; mais ainda, favorecem a disseminação da mentalidade girondina. A análise de A a Z do fenômeno é meio eficaz, à mão, para arrancar a espoleta da bomba e preservar a sanidade da opinião pública. Desço a boa parte dos fatores geradores de tensão. Vou empilhá-los. Arrastando para um polo estão os liberals e assemelhados, aqui se junta o rebanho de mentalidade libertária e esquerdista. Via geral é chegado no inchamento do Estado, tem xodó por medidas protecionistas, simpatiza com o cerceamento da concorrência, a taxação alta e niveladora, embirra com a livre iniciativa, o big business e o corporate world; em sentido contrário, gosta das leis atravancadoras promulgadas para confessadamente proteger o meio ambiente; na linha, zabumba fracassos do mercado e os quer compensados pelo agigantamento estatal na economia. Em outra faixa, costuma apoiar a liberalização do aborto e as práticas homossexuais, e igual, afinado, as políticas de gênero. A mais, de viés ateu, trabalha obstinado pela expansão do secularismo. Um fio liga tais posições: empurram para baixo e fragmentam os Estados Unidos. Puxando para o polo contrário, está o blocão conservador. Defende a vida humana desde a concepção, põe lá em cima a família, as posições for mom and apple pie, segue a work ethics, tem olho feio no bedelho do Estado na vida deles; na economia, gosta da desregulamentação e privatização. Ainda tem coisa: espia com simpatia o mundo das empresas, fica chateado com impostos além da conta, é a favor de orçamento militar robusto e disciplina fiscal; costuma apoiar a atuação dos Estados Unidos no mundo. De resto, distante do ateísmo, vê necessário o recurso a Deus e sua presença na vida pública e privada. Numa só frase, quer de todo jeito os Estados Unidos nação de ponta.

Vou mais fundo: a matéria mais delicada nem é a polarização, é a cristalização (ou a falta dela); vem antes. A cristalização, fenômeno de montante, conforma a polarização, fenômeno de jusante. O que é cristalização aqui? Cristalizar é (re)agir escorado em princípios e não só por hábito; em particular, no caso, mergulhar as raízes dos bons costumes até as embeber em princípios. Aí, no hábito se enxerta a convicção doutrinária, o que o enrijece. Com isso, a resistência do hábito ao ambiente dissolvente, já saudável, deixa o estado gelatinoso; cristaliza. Realço, cristalizar é construção gigante, começa lá na modelagem infantil, vara a vida toda; no exato, tem ponto de partida antes do nascimento, com a formação dos pais e professores. No inverso, aspecto esquecido e tantas vezes determinante da vida de pessoas e povos: depois de períodos de tensões fortes, sucede às vezes a calmaria com despreocupação generalizada; e daí a desmobilização dos espíritos. Nesse clima se dá com frequência a interrupção do processo de cristalização e pencas de hábitos bons se esvaem gradualmente; é desmoronamento paulatino, quase indolor, o mais das vezes.

Fenômenos de desmoronamento em parte decorrência da polarização manipulada já aconteceram, sua recordação serve de alerta pedagógico. Entre outros, ao longo dos séculos 19 e 20 atrapalhação sem fim carunchou a Espanha e teve efeitos arrasadores. Ali, o ataque preconceituoso à polarização, mais que nos Estados Unidos, foi arma de descrédito nacional e de demolição contra faixas conservadoras e até tradicionalistas. Por largos períodos a nação respirou um clima político corrosivo, fato tendenciosamente atribuído ao choque destruidor de las dos Españas. As guerras carlistas, três num século, 1833-1840, 1846-1849, 1872-1876 dessangraram a nação; parte enorme do sangue melhor foi sugado pela terra. Estourou a revolução republicana de 1868 e veio o deus nos acuda do sexênio revolucionário, 1868-1874. E então os desgastantes choques na época da dinastia de Saboia, 1870-1873, um emplastro que não curava nada. A 1ª República, 1873-1874, piorou a paralisação no governo e se alastrou que nem tiririca a impressão de que a urucubaca espanhola ia acabar nunca. Já em meados do século 19, a Espanha atordoada cambaleava exausta, triste España, unilateralmente estigmatizada de “nação moribunda” por corifeus da política e do jornalismo. Mais tarde, a república anticlerical de 1931 e a guerra intestina de 1936-1939 com sofrimentos e sequelas pavorosas. Veio a ânsia de nunca mais repetir o horror. E, bola de neve engrossando, setores nacionais importantes acharam que o país daquele jeito era inviável. Ou rejeitava princípios e condutas apontados em estridentes acusatórios facciosos como polarizadores, causa do entalo, ou ia remanescer sempre las dos Españas em autodestruição sem fim. Em parte pelos prolongados efeitos deletérios desse clima envenenado, a acomodação à modernidade revolucionária lá desemboca agora em maçaroca morna de relativismo, agnosticismo e costumes libertários. Ali boiam nacos do que outrora foi realidade generalizada, em que borbulhava religiosidade intensa, quase toda evaporada. Em perspectiva histórica mais esticada, o que restou do império de Carlos V em que o sol não se punha? Coisa parecida penou a Áustria, atacada como anacrônica e atravancante do progresso; antes cabeça, depois rabo. Após a 1ª Guerra Mundial virou republicano-socialista e miúda de importância. Todas as três, Estados Unidos, Espanha, e Áustria, potências conservadoras. Por processos de fundo parecido, os Estados Unidos, os anos voando, se não abrirem o olho, podem terminar nação esfarinhada; à vera, caudatária.

Um jeito de evitar desastres é começar por examinar na lupa as chefias do blocão conservador. Muita cristalização errada (origem de polarizações perigosas) vem de pregações furadas de mandachuvas contrafativos. São que nem gangrena, apodrecem a reatividade sadia, às vezes a desmoralizam; no avesso, dirigentes com ideias direitas energizam a reatividade no rumo certo. Fora os sintomas manjados positivos, feito líderes motivadores e de resultados, temos testes bons para julgar a sanidade de tais equipes dirigentes. Preliminar, olho no programa. Indícios de programa bom, encarece a pessoa, estimula seu desenvolvimento, de preferência às estruturas, acento na proteção à família; ampla difusão da propriedade. No mais, afinado com o princípio de subsidiariedade, fomento aos grupos sociais intermediários. E assim tem o Estado como ferramenta da sociedade. Coerente, espera mais da ação na sociedade que no Estado; este, contudo, valorizado com equilíbrio em sua indispensável e benéfica função supletiva de reparar, preparar e dinamizar. Sob o guarda-chuva do Estado parceiro, planos de assistência estatal para todos os desvalidos em qualquer proporção e condição, sim, os mais amplos possíveis, aqui de modo particular generosos e judiciosos programas de transferência de renda; entanto, que tais iniciativas, sem viés estatizante, alentem a autonomia pessoal, coarctando a dependência e o conformismo. Quanto à questão ambiental, sob a égide da qualidade de vida e do incentivo à economia, proteção efetiva à natureza. Tantos outros objetivos a examinar com os mesmos critérios, resumidos, sob um prisma, em sensibilidade social e estímulo à garra empresarial. Lideranças deste naipe açulam a reatividade boa.


Contrafativo vem de contrafação, parecendo, não é; não parecendo, é; casca brilhosa, miolo bichado. Significa impostura, caricatura, fraude. Caciques assim favorecem a cristalização das posições de seus adeptos em alicerces esburacados. São cúpulas deterioradas, pipocam daqui e dacolá. Também existem testes para constatar chefias bichadas. Tiro os critérios batidos, feito falta de norte e pregação desanimadora. Se o líder der positivo nesse outro tipo de teste, dos quais falo agora, luz vermelha. No que difunde, acento, claro, nos programas, mas até por gestos e atitudes, o dirigente contrafativo soca a estrutura antes da pessoa; e então, o Estado antes do indivíduo e da sociedade (Mussolini assim sintetizou a posição: Tutto nello Stato, niente al di fuori dello Stato, nulla contro lo Stato). Congruente, faz pouco-caso das sociedades intermediárias, modo especial, a família. Subestima questões doutrinárias e morais. Sua ação, tantas vezes pontuada de omissões escandalosas e reações com frequência desproporcionais, com o tempo, amolece a reatividade e em geral acaba por desmoralizá-la. Napoleão, o referido Mussolini e comandantes parelhos foram dirigentes contrafativos; macaqueação do que um bocado de ingênuos via neles e, então, trotava atrás. Porta arrombada, tranca de ferro.

sexta-feira, 29 de agosto de 2014

Os amanhãs obsoletos da América Latina

Os amanhãs obsoletos da América Latina

Péricles Capanema

Até mesmo fora de círculos ufanistas, a América Latina foi celebrada continente do futuro; hoje, tadinha, retardatária, é região de amanhãs obsoletos e melancólicos. Não sou de mascarar realidade, nem de minimizar perigos; sobre ela em sentido real se abriu a caixa de Pandora. Espiando mais de perto, sofre doença degenerativa; vai ficando para trás. A solução é sarar da mazela, até lá morreu Neves. Temos ali sociedade cada vez mais libertária, relativista e afundada em confusão religiosa espantosa. Para piorar, por décadas, países da região vêm sendo descaminhados por governos quando menos doidamente populistas e dirigistas. Tais governos em geral propugnam um nacional-desenvolvimentismo arrogante com escoro em montes de improvisações voluntaristas e autoritarismo minucioso. A versão alucinada é o castrismo; a pobre Cuba virou laboratório de mitomaníacos que, in anima vili, fizeram experiências sociais delirantes; a nação esfrangalhada está afundada na pobreza negra e na desagregação social; vive de esmolas: cubanos exilados, Venezuela, Rússia, Brasil, fora o resto. No carreiro, surtos de febre alta, feito o chavismo ou bolivarianismo, já serão daqui a pouco uns vinte anos de desgraceira cabotina, primeiro debaixo do relho do ditador desatinado, Hugo Chávez, um Perón bem mais doentio, sucedido pelo primário Nicolás Maduro. E, de passagem, largo de lado, já lá longe, governos com orientação afim, igual Torres, Velasco Alvarado, a política malucamente coletivista de Salvador Allende, batelada grossa engarranchada no atraso. Hoje em dia, inda na vanguarda do atraso, Evo Morales, Daniel Ortega, Rafael Correa, certo sentido, José Mujica. O Chile andava meio vacinado contra a toxina populista, mas logo pode ter recaída. Também demolidoras no seu conjunto as políticas de Lula e de Dilma, a dirigista desastrada, um Geisel piorado, do casal Kirchner e vai por aí afora. Costumo lembrar, é endemia de contágio fácil e cura difícil esta gororoba de nacionalismo, militarismo populista, marxismo, arremedos de cristianismo e guevarismo; doses diferentes em cada caso. Em amigações espúrias, grassa com frequência o auxílio de companheiros de viagem durante o ladeira abaixo; na resvaladura vão digerindo as apetitosas vantagens abocanhadas em troca do oportunista apoio oferecido. E ainda de incontáveis inocentes úteis, cuja colaboração ingênua pavimenta a via crucis das populações do continente. Até o momento, salvantes os irmãos Castro, cinicamente tiranos, essas ditaduras encapuzadas, desde a nascente useiras e vezeiras do totalitarismo normativo, são farsas que galhardeiam respeito pelas regras da democracia, enquanto, no encalço inescrupuloso da hegemonia, trabalham para acabar com a separação e independência dos poderes, sufocar a liberdade de imprensa, cercear a liberdade religiosa e a de expressão, eliminar o respeito aos contratos, suprimir as garantias à propriedade e tornar inócua a livre associação política. Eleições fraudadas no conteúdo de autêntica manifestação popular, mas em que se conservam as aparências da livre expressão dos votos, somadas à farsa grotesca do emprego direcionado dos instrumentos da chamada democracia participativa legitimam tais regimes aos olhos desatentos do mundo desenvolvido. A fórmula da derrocada, no substrato, é a mesma; varia só o grau da virulência. No comum têm à frente craques no ilusionismo político, fascinantes pajés de eflúvios apatetadores. Balançando com descaro a bandeira da pena dos pobres, da qual pretendem o monopólio, enfeitiçam as populações ao prometer satisfação imediata das necessidades mais urgentes, fundeados no mito voluntarista da onipotência estatal, a rançosa crendice no poder mágico do Estado ou do führer, duce, grande timoneiro, comandante, seja lá o que for. Com os problemas reais, o usual é escapulir deles irresponsavelmente pela política do avestruz. Outros sintomas da doença: a discurseira entulhada de compromissos ocos substitui as garantias reais aos investimentos privados, a gastança estatal asfixia os investimentos públicos, a incompetência e o ideologismo obcecado estancam na educação a melhoria do ensino e, normal, da qualidade da mão-de-obra; de mais, a política externa estribada na parlapatice terceiro-mundista faz escolhas danosas ao crescimento e à segurança do país. Na esteira, cascata de desgraças: produtividade estancada, competitividade prejudicada, marasmo econômico, deterioração do mercado de trabalho, desemprego maquiado, estatais viradas em mastodontes pesando na cacunda do povão, contas públicas em frangalhos encobertas por truques contábeis, total descrédito da política econômica com os homens da experiência e da ciência, serra acima no consumo de drogas, mocidade sem futuro, parte boa dos mais capazes se aventurando lá fora. Ainda sequelas desse curso, só mais irritantes: desabastecimento, racionamento crescente até de produtos básicos, tumefação da criminalidade. Por essas e outras, são décadas perdidas, com âncora nas armas (caso especial de Fidel Castro), assim como sobretudo em programas assistencialistas demagógicos que enleiam em boa medida um corpo eleitoral, com ilhas de exceção, pouco instruído, desinteressado dos assuntos públicos, fortemente sugestionável. Nesse clima, incha sem parar um fenômeno macabro, dele hoje são exemplos maiores Cuba e Venezuela (no mundo, a Coreia do Norte): a mordaça na sociedade, mantida apertada de jeito prevalente pelo expurgo dos opositores das posições de relevo e pela casta dos privilegiados, membros das nomenclaturas socialistas, modernos feitores da partidocracia pelega; são em verdade escravos-escravizadores encarapitados em postos de proa nas Forças Armadas, na administração pública direta e indireta, nas direções sindicais, bem como no Partido e até no Judiciário. A mais, no estirão liberticida proliferam enxames de tonton macoutes do oficialismo, as intimidantes milícias de adeptos brucutus, aterrorizando com sanha particular em bairros populares, bem como os pelotões das canetas alugadas na rede, nos jornais, revistas e TVs sabujas. Falta botar em destaque, num continente de ampla maioria de católicos, a já quase centenária faina da esquerda católica que ─ com lastro em noções furadas de caridade e justiça ─ contamina faixas largas do público, e com isso socorre o movimento esquerdista, com quadros de expressão, militantes a rodo e áreas de voto; de modo particular promovendo metamorfoses decisivas em correntes de opinião e até no temperamento público. Ao fortalecer orientações estatizantes que sufocam a prosperidade, a grande geradora de emprego e renda, atrasa a inclusão social. E com isso turbina brutal concentração dos ganhos e da propriedade nas mãos do Estado. Esbofeteia, assim, o princípio de subsidiariedade, presente de alto a baixo na doutrina social católica, que estabelece o papel suplementar do Estado em relação à família e demais sociedades intermediárias nas várias esferas da vida social. Na retórica, a opção preferencial pelos pobres; na prática, decênios de empedernida orientação que atrapalha a criação da riqueza. Na conta final, vem espoliando o futuro de milhões do seu direito básico de crescer na vida; tapa os ouvidos aos clamores autênticos dos pobres. Tal labuta do progressismo católico e de suas versões exacerbadas nas comunidades de base e nos teólogos da libertação tem sido o que mais prejudica o combate real à pobreza na América Latina. Reações e choques? Pois é, atinente ao Estado inchado e parasitário, cardumes enormes não relacionam o paquiderme estatal com o engessamento da economia e, inevitável, não enxergam relação de causa e efeito entre o estatismo desbragado e suas preocupações imediatas: emprego, saúde, moradia, transporte, carestia (primacial, a inflação dos alimentos), drogas, segurança, educação, ética. Reações ainda comuns, mas escapistas, o vezo da transferência de culpa pela invenção descarada de bodes expiatórios para os renitentes fracassos (capitalismo anglo-saxão, as 200 famílias, multinacionais, o polvo Light, os coronéis, as oligarquias, a educação hispânica, e vai por aí afora). Surgem ainda, agora sintomas bons, fortes especialmente em setores médios, nojo contra a corrupção, o favoritismo debandado, as relações promíscuas com organizações criminosas, o aparelhamento da máquina do poder, as gastanças demagógicas, os rombos orçamentários nos vários níveis da administração; igual os machuca a incompetência gerencial das despreparadas equipes de governo, redadas de apaniguados bisonhos das direções partidárias que tecem um compadrio de cumplicidades de arrivistas, aventureiros e ideólogos lunáticos e infestam com seu voluntarismo e improvisação os milhares de cargos de livre provimento. No curto, o crescimento dessas pobres nações no fim da fila, quando germina, vem da energia latente na sociedade, vencendo até mesmo a desorganização dos governos intoxicados por doses diferentes do esquerdismo populista. E já por dezenas de anos temos um continente emperrado, amontoando heranças malditas, via de regra se opondo ao esboroamento mais por espasmos temperamentais efêmeros, seguidos de desalentos, que por razões enraizadas em princípios, o que o atasca no lameiro a que foi empurrado.