quarta-feira, 1 de janeiro de 2020

Fazer as coisas pela metade


Fazer as coisas pela metade

Péricles Capanema

Escrevo em 29 de dezembro, hora da retrospectiva e da prospectiva. Resolvi fazer as duas em uma, assunto único que possa permanecer lembrança útil, singela embora. E o que de imediato me veio à cabeça que poderia unir o olhar para o finado 2019 e a conjetura de 2020? Pulou na frente, de forma inesperada, um traço bem nosso: o gosto de fazer as coisas pela metade.

Os dois anos terão isso em comum, infelizmente. Um, já foi, 2019, agastou-me à beça o procedimento rotineiro de não ir até o fim; o outro está aí, 2020, só milagre para não acontecer o mesmo. E de antemão advirto, não o digo por pessimismo, mas por realismo, para tentar ajudar, é tentativa de diminuir efeitos de mau hábito. Todo mundo viu, fizemos as coisas (as boas) pela metade em 2019, vamos fazer pela metade as coisas (boas) em 2020. Alguém acha que vou errar? Deus queira.

Avanço. Fazer as coisas pela metade, vezo de séculos, é dos nossos numerosos tumores de estimação. Constituiria, aliás, importante avanço civilizatório do Brasil a convicção entranhada que é preciso acabar com tal hábito. Aqui deixo uma das razões da usança destruidora, quem sabe a de maior relevância. Gilberto Amado repetia, ficava animado nas raras ocasiões que encontrava um brasileiro capaz de ligar causa e efeito. Quando for generalizado comportamento social entre nós ligar causa e efeito, sumirão muitos de nossos problemas.

Vamos a 2019. Foi feita a reforma da previdência, trombeteada com boas razões como início do saneamento das contas públicas e um dos marcos, talvez o principal, de nossa eventual prosperidade futura. Economistas sérios advertem, falta muita coisa, é imprescindível já agora pensar nelas. De saída, falta a reforma previdenciária nos Estados e municípios (a tal PEC paralela). Seu efeito, por enquanto, será limitado, ainda que acenda esperanças justificadas. A Instituição Fiscal Independente (IFI), órgão do Senado Federal, observa: “A reforma da previdência não resolve o problema fiscal do país, mas dá fôlego. No máximo, permite que a despesa previdenciária deixe de crescer em relação ao PIB nos próximos anos”. O que lamento, poucos falam em completar o trabalho. Já está bom ter feito as coisas pela metade. Se não for enfrentado o restante, lá na frente o mesmo problema explodirá de novo.

Privatização, outra política feita pela metade. Há pouco mais de ano, falava-se no trilhão que entraria no caixa do governo com a venda das estatais deficitárias. Sumiram os números, aqui e ali o dr. Salim Mattar faz discretas advertências, limitado pelo cargo oficial, sobre obstáculos que tem encontrado.

Outros baldes de água fria. Fontes do governo informam, a TV Brasil não vai mais ser privatizada. A VALEC, idem. Petrobrás, Caixa e Banco do Brasil, nem se fala, são totens que permanecerão imunes a qualquer privatização. A economista Elena Landau, de posições às vezes censuráveis em outros campos, é no âmbito econômico bom exemplo da angústia que se generaliza entre correntes contrárias ao enorme papel do Estado na economia brasileira (tumor de estimação é coisa séria, mesmo que pese feio no cangote do povo). Advertiu ela em artigo no Estadão, repetindo o que vem dizendo com eco crescente em outros órgãos de divulgação: “Trabalhadores continuam sem liberdade para escolher onde investir seu FGTS. A abertura do mercado de gás não veio. A Petrobrás segue monopolista em várias áreas, celebrou contrato de gás com distribuidoras para 2020 impondo aumento de quase 20% em lugar da prometida queda de 40%.  As estatais criadas pelo PT estão vivas. O trilhão de reais com a venda de estatais e mais outro trilhão com a venda de imóveis não aconteceram, nem virão. A prometida privatização ampla, geral e irrestrita se resumiu a uma política de desinvestimentos das estatais. Das 17 empresas listadas formalmente no programa, nenhuma está pronta para ser vendida, e a maioria delas já está incluída desde o governo Temer. As mais importantes são Telebrás, Casa da Moeda e Correios, de vendas e valores duvidosos, ao lado de mais de uma dezena de empresas que não vão gerar ganho algum. Deveriam ser fechadas. Nada de Petrobrás, Banco do Brasil ou Caixa. A empresa do trem-bala, a EPL, vai se juntar com Infraero e Valec e formar uma grande estatal de logística. Para facilitar a criação dessa nova e poderosa estatal, outra foi criada: a NAV. Se Bolsonaro não abraçar a privatização, serão mais três anos de vendas no varejo. Acreditou no liberalismo deste governo quem quis ser enganado”. Não custa recordar, boa parte dos ativos das estatais, vendidos em programa de privatização, caíram e estão caindo nas mãos de estatais chinesas (do Partido Comunista Chinês, para ser direto).

Falava de uma economista, lembro outro, Gustavo Franco, ex-presidente do Banco Central. Também no Estadão, ele constatou quadro preocupante, decorrência de nosso vezo de fazer as cosas pela metade. “Em 1980, o Brasil tinha renda per capita equivalente a cerca de 40% da renda per capita dos EUA. Hoje é 25%. A pergunta é: quanto é preciso crescer a cada ano, de 2020 a 2080, para chegar lá com os mesmos 40% de um século antes? Resposta: 2,5% ao ano mais ou menos, com hipóteses razoáveis sobre população, sobre os EUA e a produtividade. Ou seja, 2,5% até 2080 assegura que não vamos perder este século”. Em 2080, com tal crescimento anual chegaríamos a ter 40% da renda per capita do norte-americano, índice que tínhamos em 1980. E estamos crescendo 0,5%, 1% ao ano, quando muito.

O que aqui enfatizo? O estatismo faz parte dos nossos tumores de estimação, entranhou de alto a baixo. Outro, a reforma agrária. São enraizadas rotinas obscurantistas na sociedade e no Estado, pois fogem da luz da realidade, impedem o crescimento natural do Brasil ao sugar pelas décadas afora amazônicas potencialidades do organismo social. Hoje pus no pelourinho outra característica, o gosto de fazer as coisas pela metade. Tudo isso asfixia a inovação, intoxica a iniciativa, dificulta a criatividade, mina o trabalho, constituem fortes amarras no atraso.

Já falei disso, mas a repetição é necessária; reforma agrária e estatismo são componentes importantes da opção preferencial pela atrofia, vitoriosa em Cuba, na Venezuela, nos países em que a esquerda triunfou por muito tempo. Temos décadas de aplicação da função social às avessas e de consequente crueldade com os pobres. Estes, como reação louvável e explicável, fogem espavoridos de tais países e procuram entrar desesperadamente no país que, apesar de todos os defeitos que lhe possam ser apontados, nunca fez a opção preferencial pela atrofia: os Estados Unidos da América.

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