sexta-feira, 1 de novembro de 2019

O futuro chegou antes da hora


O futuro chegou antes da hora

Péricles Capanema

Amigo meu de décadas, como poucos culto, amável e inteligente, enviou-me dito francês conhecido “savoir dire, savoir plaire, savoir faire” (saber dizer, saber agradar, saber fazer), como possível tradução da locução inglesa “soft skills”, por mim examinada em texto recente ▬ “Foco no sucesso”, desde 27 de outubro em meu blog periclescapanema.blogspot.com.

Perguntava eu no artigo se alguém tinha em mente tradução adequada para o que hoje significa “soft skills” no mundo dos negócios, em que de forma especial exprime qualificações necessárias para ali alcançar posições de destaque (eu não tinha). Minha intenção primeira no presente texto era discorrer sobre em que a viva construção francesa acima transcrita parece exprimir corretamente o “soft skills” e em que, a meu entender, deixava de lado certos aspectos.

Todo o artigo já estava na cachola, era só limar um ou outro pormenor e pôr no papel. No texto imaginado por mim havia um ponto que só uma vez ouvi levantado (aliás, por político mineiro que já nos deixou há tempos) como fundamental na vida: a importância do convívio com homens inteligentes. O experiente homem público julgava indispensável para a formação intelectual, para moldar a personalidade, para as obrigações de pai de família e de profissional o tal convívio. “Procure sempre o convívio dos homens inteligentes”. Claro, homens no sentido normal da palavra, mulheres, crianças, moços, idosos (seres humanos). Ousaria rematar com um pontinho: busque o convívio dos bons observadores. Nada soma quem não sabe ver direito a realidade. Os raciocínios brotam desfocados se os olhos antes não captam realidade objetiva e rica.

Corta, o resto fica para depois. De repente fui agredido pela realidade e me vejo obrigado a tratar agora de outro assunto. O amigo acima mora em Frankfurt. Outro amigo, residente em Paris, a quem não vejo faz muito tempo, muito tempo mesmo, o que lamento, têm algo em comum: o mau gosto de ler textos meus. Passou os olhos pelo “Preocupa” (postado no blog também em 27 de outubro) e se viu na obrigação de me avisar: o futuro já chegou. Pensei comigo: antes da hora (para os incautos). O futuro em tela estava marcado para 2047.

Todos sabem, o “Le Monde” é jornal de enorme importância, com viés de centro-esquerda (não é um “Le Figaro”). E assim em geral ecoa mal ou não ecoa as vozes que vêm da direita. O “Le Monde” edita uma espécie de revista “Le magazine du Monde”, cujo número 424 de 1/11/2019 traz informativo artigo de Florence de Changy intitulado “Les entreprises étrangères sous pression chinoise” (As empresas estrangeiras debaixo da pressão chinesa).

Não são empresas pequenas, são mamutes famosos, alguns dos quais do mundo do alto luxo. Florence de Changy começa relatando o caso da NBA (National Basketball Association), a gigante norte-americana que coordena o basquete nos Estados Unidos. Um simples tuíte de Daryl Morey, dirigente do Houston Rockets, apoiando os combatentes pela liberdade em Hong Kong (atenção, só reclamam o que consta dos textos legais), desencadeou furor na China continental, o que causou prejuízos grandes aos maiores clubes dos Estados Unidos. Alguém duvida que o furor não foi instigado pelas autoridades chinesas? Retaliada no bolso, a NBA entrou logo na linha. O recado, e não é o primeiro, ficou mais claro: o governo chinês exige lealdade absoluta (se quiserem troquem lealdade por submissão, fidelidade, vassalagem, subserviência, dá no mesmo). Não admite ninguém pisando fora da linha traçada pelo PCC (Partido Comunista Chinês).

Outro caso. Tem sede em Hong Kong uma linha aérea grande e reputada, a Cathay Pacific. Em agosto, o governo chinês exigiu da empresa que demitisse imediatamente duzentos empregados que participaram dos presentes protestos na cidade. Ou, menos que isso, de alguma maneira manifestaram algum apoio, mesmo que discreto. Ordem dada, ordem cumprida. Foram logo demitidos os pouco mais de duzentos funcionários. Rua. E ainda três dirigentes. A punição não terminou aí, funcionários de grandes empresas chinesas estão proibidos de voar na Cathay Pacific. Avery Ng, deputado social-democrata, nota: “O governo chinês deu o recado: qualquer pessoa, qualquer uma mesmo, que ousar tomar posição não conforme à linha determinada pelo Partido Comunista Chinês, será punida ou demitida. É aviso ameaçador para todas as empresas que tenham o menor interesse no mercado chinês”.

Poucas semanas depois, foi a vez do BNB Paribas, banco francês. Funcionário seu em Hong Kong ousou colocar no Facebook particular expressão de alguma maneira depreciativa com a China continental e favorável aos Estados Unidos. Sofreu avalanches de ataques das milícias digitais. Teve de sair do banco (a reportagem não deixa claro se pediu demissão ou foi demitido; na prática, a mesma coisa, rua).

Resumindo o clima, observou francês residente há quinze anos em Hong Kong: “Começamos a ter medo de nossa própria sombra. É enorme o efeito da intimidação chinesa. Todo mundo sabe, mas não se pode falar a respeito. Além do mais, de que adiantaria? É a nova realidade”.

De momento, todas as grandes empresas de Hong Kong, e aqui estão incluídas as francesas, muito presentes no setor do luxo e das finanças, temem o passo em falso fatal. Têm uma única escolha: obedecer Beijing. Versace, Givenchy, Coach, Delta Airlines, Zara, entre outros, já pagaram por seus erros.

A vigilância inclui o Tibete e a China Nacionalista. Estão proibidos comentários ou quaisquer manifestações que destoem da linha oficial do Partido Comunista. Beijing nos dois assuntos não tolera ponderações contrárias a seus interesses. A Dior, numa apresentação interna, projetou um mapa da China. Por distração, não constava nele Taiwan. Guerra das milícias digitais. A Dior se dobrou em desculpas, reconheceu publicamente o dogma comunista da “China única”, “respeito constante pelo princípio da China única”. E assim vai.

E assim irá. Pelo tratado com a Inglaterra, a administração de Hong Kong só passará a ser chinesa em 2047. A China perdeu a paciência, mandou às favas escrúpulos, e já está sinalizando sobre o que teremos pela frente. O futuro está chegando antes. Para Macau, a data é 2049, mas ali o futuro já chegou. Eles não piam contra a China, que já domina tudo. Hong Kong e Macau recebem hoje tratamento que, se não acordarmos, será o nosso daqui a algum tempo. Quando? Não sei. Uma coisa sei, para nós, o futuro também pode chegar antes da hora.

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