terça-feira, 21 de setembro de 2010

A Europa em compasso de espera

Lições espanholas


Péricles Capanema
(publicado em Polonia Christiana, nº 14, maio de 2010)

Espanha e Polônia, para fúria de incontáveis sociodemolidores e alegria da gente direita, compartilham várias características, que são sintomas reveladores de sanidade social.

Em importantes aspectos são as nações mais parecidas da Europa. O mais notável traço comum, de enorme significado histórico, é seu Catolicismo ardente, que hoje infelizmente esfria. E o Catolicismo frio vai enregelar o sangue das duas.

Com o tempo, matará a religiosidade e a cultura. Como evitar que se chegue até lá? Na prática, é difícil parar e reverter o processo. Na teoria, contudo, por ser óbvio, é fácil enunciar o caminho em rapidíssimas palavras: pela oração e luta, com muita energia e grande discernimento.

Uma é a nação mais católica da Europa Oriental (ou Central, se preferirem). Outra, a nação mais católica da Europa Ocidental. De outro jeito, a Polônia é a Espanha da Europa do Leste, a Espanha é a Polônia da Europa do Oeste.

Nem vale a pena se estender aqui sobre alguns outros pontos de comum, como temperamento, sociedades em rápida mutação, nível econômico parecido, educação popular em patamares próximos. O mais importante já está realçado, a Fé ardente de ambas.

No século 20, o comunismo, como chacal esfomeado, saltou sobre ambas. Dilacerou-as, mas não conseguiu matá-las espiritualmente. Depois de uma pavorosa guerra intestina, que em muitos de seus aspectos teve traços de cruzada, a Espanha livrou-se de suas garras.

A Polônia, jogada dentro da jaula comunista com a divisão das áreas de influência, combinada em Yalta pelas potências vencedoras da 2ª Guerra Mundial, só escapou das mandíbulas da fera décadas depois, com o desmoronamento dos regimes de obediência moscovita na Europa Oriental.

As duas nações ficaram com seqüelas doloridas e carregam cicatrizes honrosas da investida comunista. E ainda lições de políticas suicidas para evitar a todo custo.

Há outras semelhanças de grande significado. Sobre estas, uma palavra. A Espanha teve um inimigo potentíssimo, só expulso após oito séculos de lutas: o árabe muçulmano.

A Polônia tem ainda diante de si, vivo, ativo e também gigantesco, um inimigo histórico de sua independência, religião e cultura: a Rússia, antes dos czares, depois dos bolchevistas, agora presa de misteriosas e ainda indefinidas forças que ora parecem grã-russas, ora nacionalistas, ora coletivistas, ora libertárias; em geral, uma mistura confusa e indecifrável de todas elas.

Perto da fronteira oriental da Polônia, hostil, move-se nas sombras o urso agressor. Esgueira-se como uma assombração soturna, mas claramente poderosa e com delírios expansionistas.

No passado, a Polônia algumas vezes buscou proteção contra seu inimigo histórico na aliança com a França. Hoje busca proteção contra a nova autocracia moscovita em especial na amizade com os Estados Unidos e na inserção na Europa comunitária. Com isso, ela pôs uma focinheira nas ambições russas e pode viver com relativa segurança e tranqüilidade. Abriu para si possibilidades de progresso, de outra forma inexistentes.

Tais proteções supõem contrapartidas. Os Estados Unidos têm suas condições. Sobre elas, não vou me estender aqui. O preço exigido pela Europa de Bruxelas está sendo desvelado gradualmente. É bem maior, vai mais fundo, até as raízes. A Polônia tem de acertar o passo com um programa utópico e destrutivo, estar em sintonia com uma ainda bastante misteriosa Europa do futuro, moldada pelas correntes revolucionárias mais virulentas.

O que já está claro nesta Europa imaginada, alarma. A parte oculta, mas com doutrina inspiradora e propagandistas bem conhecidos, aterroriza.

Se a Polônia não ceder ─ abandonando princípios e costumes tradicionais emanados de seu passado cristão, é o enunciado da ameaça velada ─, não mais poderá pertencer à Comunidade Européia, que cada vez mais se afirma como um organismo político supranacional, fortemente intervencionista, cujo objetivo é dirigir a vida interna de seus membros.

De outro jeito, para não ser expulsa da Europa comunitária, a Polônia tem de por em prática, ainda que gradualmente, um programa libertário e coletivista. Na execução deste programa, por enquanto enquadrado numa moldura de democracia liberal, cada vez menos neutra e crescentemente intolerante, o laicismo agressivo, o aborto amplo e direitos homossexuais irrestritos, entre outros, são apresentados como irrenunciáveis conquistas da modernidade.

A Polônia vai sendo arrastada no rumo de um horizonte liberticida e anarquista.

* * *

Na Espanha não é diferente. É o mesmo programa para ser executado. E lá, do mesmo modo, promovido pelas correntes que tentam impô-lo à Polônia.

Aliás, o programa é de alcance mundial, com objetivos idênticos na Polônia, Espanha, Itália, Irlanda, Estados Unidos. Os católicos e as correntes com noção nítida do potencial demolidor de tais objetivos, com mais facilidade unirão seus esforços em frente comum se tiverem claro que a investida é inclemente e global.

 A única barreira efetiva a sua aplicação será a energia das reações. Com reação vigorosa, ninguém estará obrigado a pagar a extorsão, resumida na fórmula: ou paga ou é expulso e vai para o castigo, fica isolado. Com reação mole, todos terão de acertar o passo. É questão de tempo.

Aqui entra em especial a Espanha. Por vários meses, em 2009, a Espanha ocupou as manchetes por causa do projeto de lei de ampliação do aborto. O governo socialista trabalhou afincadamente para sua aprovação. Conseguiu que a Câmara Baixa o aprovasse em dezembro de 2009 e que o Senado votasse a seu favor em fevereiro de 2010.

A Espanha autêntica, ligada a seu passado cristão, reagiu corajosa e encolerizada. Entre as contínuas e repetidas manifestações de repúdio houve várias passeatas gigantescas e o Episcopado tomou posições enérgicas, inclusive declarando que o deputado católico que votasse a favor da lei estava fora da Igreja e não poderia comungar.

O governo não cedeu, avançou e venceu a batalha parlamentar. Após a assinatura do Rei em 3 de março último, que mais uma vez decepcionou seus aliados naturais e agradou a seus inimigos, a prática assassina prevista nos textos legais virou lei.

A justificativa da lei revelava muito. A Espanha sentia-se obrigada a acertar o passo com o que seria a modernidade: “La presente ley pretende adecuar nuestro marco normativo al consenso de la comunidad internacional en esta matéria. [...] establece, asimismo, uma nueva regulación de la interrupción voluntaria del embarazo fuera del Código Penal que, siguiendo la pauta más extendida en los países de nuestro entorno político y cultural”. E segue por aí. Os legisladores temiam o anacronismo e a rejeição. Em muitos sentidos, foi uma derrota amarga para a Espanha tradicional.

Vamos nos fixar na situação presente. A Espanha saiu das manchetes, é o que parece e é o que aparece. Em termos. Ela continua nos radares de quem influi e decide.

De fato, a Espanha nunca sai da atenção de ninguém que “pensa Europa”. Desde Napoleão, pelo menos. O Corso tinha seus exércitos opressores, bafejados pela legenda do general invencível. A Espanha não deu bola nem para os exércitos nem para a legenda. Enfrentou-os. 

O imperador dos franceses foi espancado pela reação espanhola, que teve ainda o auxílio poderoso do general Inverno nas estepes geladas da Rússia. Napoleão caiu e a história da Europa tomou rumo diferente, de maior consonância com seu passado cristão.

Agora, como antes, a configuração futura da Europa depende, em boa parte, da força de impacto do inconformismo espanhol. Se, diante das imposições de acertar o passo com o programa libertário em curso, a Espanha reagir em sintonia com sua história de heroísmo, na afirmação destemida de sua inconformidade, seu bom exemplo despertará ódios furibundos, saraivadas de críticas ácidas, mas também revigorará milhões de corações e repercutirá de forma positiva na Europa inteira.

E a Europa de Bruxelas não terá condições de cobrar sua fatura de legislação demolidora. Vai ter de por a viola no saco. Mas caso se deixe arrastar com indolência para a derrota, o Velho Continente estará muito mais próximo do momento em que nele se apagarão os últimos raios do sol que um dia foi chamado de civilização ocidental e cristã.

E como reagirá a Espanha? Qual será a temperatura de seu ânimo? Aqui está a grande questão, talvez a grande questão da política européia nos próximos anos, mesmo que sobre ela não saia uma linha na imprensa.

Na década de 30, seu ânimo foi imbatível. Não temeu a pressão internacional, a zombaria e perseguições internas das correntes revolucionárias e o país esteve disposto a ir até as últimas conseqüências lógicas de suas posições.

Estamos em 2010. Neste último período, aproximadamente 80 anos, a Espanha sofreu uma operação psicológica e moral de resultados trágicos. 

Uma era a Espanha antes de 1936 (hoje, pouco resta vivo e atuante do que apresentava de mais precioso na alma). Nela havia uma corrente profundamente enraizada no seu passado cristão. Era o que tinha de melhor. Dentro dela crescia e se afirmava também outra Espanha. Nesta outra Espanha, revolucionária, que recusava a herança dos ancestrais, os traços mais chocantes eram o ateísmo e a anarquia.

Entre 1936 e 1939, as “duas Espanhas”, que já se haviam chocado com força nas décadas anteriores, enfrentaram-se, armas na mão. Combate de morte, sem quartel.

Quando os canhões se calaram, o país parecia arruinado. Cerca de um milhão de mortos, sofrimentos indizíveis, desgraças pavorosas e destruição sem número. Fome. A Espanha tradicional, exausta, moída, coberta de feridas e exangue, venceu.

E logo depois, a nação foi jogada no ostracismo. Ficou como uma pesteada, cercada por um “cordão sanitário”. Tornou-se uma espécie de pária. Padeceu por muito tempo o horror da sensação de que era a rejeitada das nações e incompreendida até por seus amigos próximos. A provação enfiou as garras na carne da nação.

Surgiu, então, incontido do fundo da alma de milhões de espanhóis um brado: Nunca mais. Passamos por essa, está bem, mas o calvário padecido já está no passado. De novo, não. É tormento demais.

Vamos trabalhar juntos para que não se repitam as condições que geraram tal desgraça. Convém notar que a convicção da premência de encontrar um rumo novo influiu mais no lado que venceu a contenda de 1936. Sem fundamento, sentiam-se eles particularmente culpados pela situação anômala por que passava a nação.

E o que aparecia mais importante? Mudar a mentalidade. Acabar com a mentalidade antiga, vista como rija e inflexível, pautada pelo idealismo e heróica, supostamente responsável pelo sofrimento, atraso e isolamento da Espanha.

Em outras palavras, derrubar don Quijote do cavalo e entregar as rédeas do país a Sancho Pança. Tomo aqui don Quijote, é claro, como exemplo de um tipo de espanhol, e não como o Cavaleiro da Triste Figura foi descrito por Cervantes, caricatura grotesca do idealismo espanhol. E Sancho Pança aqui representa o homem pragmático, sem ideais, egoísta, e não quem poderia representar o bom senso camponês.

Enfim, era preciso acertar o passo com a mentalidade tida como dominante na Europa progressista e nos Estados Unidos que estadeavam riqueza e felicidade. O progresso seduzia. Era contínuo e vinha cheio de esperanças.

Os Estados Unidos atravessavam os golden years e a França as trente glorieuses. Na atmosfera religiosa começavam a soprar os ares do Concílio Vaticano II, de abertura, diálogo e ecumenismo. Numerosos setores da Espanha queriam participar da festa. E logo. Mas para isto precisavam enterrar don Quijote. Foi o que fizeram.

E, metaforicamente, a Espanha se distendeu e começou a sorrir. O mundo ao redor, em resposta, começou a sorrir para a Espanha.

Este fenômeno que já era forte no começo dos anos 50, agigantou-se e ainda continua influindo. Nos anos finais do franquismo, o clima estava já estava bem distendido. Antes gelado, com cortantes borrascas de neve, apresentava-se então morno, quentinho, gostoso. O turismo explodia. As “duas Espanhas” pareciam derreter. A sensação era de que se caminhava para o encontro da fórmula salvadora.

As “duas Espanhas” desapareceram como grande realidade do panorama público do país. O espanhol afirmativo, destemido e idealista ficou na defensiva. O novo espanhol, ecumênico, relativista e hedonista tomou a dianteira. Moldou a Espanha dos últimos anos. Vive em atmosfera de triunfo.

Até quando? Em resumo, a Espanha de Sancho Pança, como uma sucuri, está envolvendo, sufocando, triturando e devorando a Espanha de don Quijote. Se Sancho Pança vencer, a Europa de Bruxelas vence. Se don Quijote vencer, a Europa de raízes cristãs poderá ser salva.

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